Ler por aí… na Sicília, Itália

” ‘Nunc et in hora mortis nostra, Amen.’ A recitação do rosário quotidiano terminara. Durante meia hora a voz calma do Príncipe evocara os Mistérios Dolorosos; durante meia hora outras vozes misturadas tinham tecido um sussurro ondulante, em que sobressaíam as flores de ouro das palavras insólitas: amor, virgindade, morte; e enquanto esse sussurro durava o salão rococó parecia ter mudado de aspecto; os próprios papagaios, que abriam as suas asas irisadas na seda das tapeçarias pareciam intimidados; quanto à Madalena, entre as duas janelas, parecia mais uma penitente do que a beldade loura que se costumava ver, perdida sabe Deus em que devaneios.”
O Leopardo viveu o Risorgimento italiano, em que os reinos italianos sucumbem a Garibaldi numa república unificada. O Reino das Duas Sicílias não é excepção. O Leopardo é Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, e como um leopardo, descreve-se pela sua força, nobreza e sensualidade.
Vendo a nobreza siciliana, nomeadamente a sua própria casa e linhagem, perder poder e riqueza para as classes emergentes, a posição de Don Fabrizio em relação à situação política vivida é de distanciamento. Embora compreenda que a mudança é inevitável e reconhecendo o mérito nos novos valores democráticos, o Príncipe deve lealdade ao seu rei, e além disso pressente uma mudança difícil de suportar nos seus detalhes mais realistas. A vida doce e agradável do Leopardo e da sua família tende a dissolver-se numa sociedade não feudal.
Lampedusa é capaz de explorar as situações em que isto é evidente de forma deliciosamente pícara – não esqueçamos que a história é inspirada no avô Lampedusa. Esta sensação de decadência, em que se encontrava a aristocracia da época, é particularmente visível quando Tancredi e Angelica percorrem arrebatadamente as alas do palácio de Donnafugata há muito devolutas, escondendo-se por detrás de quadros representando velhos e nobres Corberas, descobrindo preciosidades e coisas de que ninguém suspeitaria.
Donnafugata, um dos lugares chave da história, é um dos (cada vez menos numerosos) feudos de Don Fabrizio. O lugar em que Lampedusa se inspirou para construir Donnafugata é uma vila entre Palermo e Agrigento, que se chama Santa Margherita di Belìce. Esta vila terá sido fundada por um barão Corbera, antepassado de Lampedusa, e o seu palácio Filangeri Cutò, destruído por um terramoto em 1968, era a casa de férias da família Lampedusa quando o escritor era criança. Hoje, reconstruído o palácio e os seus jardins, funciona ali o Museu Il Gattopardo.
A Villa Salina é o outro lugar da história de O Leopardo, e a sua base é também auto-biográfica, pois inspira-se no Palazzo Lampedusa, residência da família em Palermo. Este palácio situava-se na esquina da Via Lampedusa com a Via Bara All’Olivella e foi bombardeado em 1943 pelos aliados. Muito perto dali, ficam a Livraria Flacovio e o Bar Mazzara, ambos frequentados por Lampedusa, e neste último diz-se que foram escritos alguns capítulos de O Leopardo.
A escrita de Lampedusa é impregnada de perspicácia e ironia bem disposta e elegante, e recorre frequentemente a imagens que evocam as múltiplas camadas de que é composta a Sicília – entre gregos e romanos, árabes, bizantinos, aragoneses, piemonteses e bourbons. É também uma escrita dos cinco sentidos. Sentimos o calor siciliano como se também atravessássemos aqueles campos, debaixo do sol e da poeira das estradas. Sentimos os cheiros de uma manhã de caça, como os sentia Bendicó. E a música do baile entra nos nossos ouvidos e embala-nos até se tornar difícil de suportar. Apetecem-nos os maccheroni servidos no jantar de Donnafugata. Os sabores sensuais adivinham-se na boca de Angelica.
Luchino Visconti filmou Il Gattopardo em 1963, e tornou eterna a obra-prima de Lampedusa. Depois de recusado pelas mais prestigiadas editoras italianas, em vida do seu autor, O Leopardo foi publicado postumamente, há exactamente 50 anos.
Lampedusa

Giuseppe Tomasi di Lampedusa nasceu em 1896 em Palermo, numa família da aristocracia siciliana. Foi educado num ambiente clássico e sofisticado, com acesso a diversas fontes culturais.
Estudou direito em Roma, participou como militar na Primeira Guerra Mundial, tendo sido feito prisioneiro na Hungria, e regressou a pé ao seu país. Casou com uma baronesa letónia, analista freudiana exilada em Londres.
Apesar da vida intensamente cultural e literária que mantinha em Palermo, e de ter escrito artigos literários para jornais e alguns contos, só começou a escrever O Leopardo em 1955, após assistir a uma cerimónia de entrega de prémios literários em San Pelegrino, na Lombardia. Infelizmente foi o único romance que escreveu, tendo falecido pouco antes da publicação da sua obra prima, hoje considerado um monumento da literatura italiana.
A Sicília

Atravessando o estreito de Messina, na ponta da bota, passamos para a Sicília, mergulhada no mar Tirreno e povoada de vulcões e templos gregos. A paisagem é bravia, mediterrânica, e as vinhas produzem vinhos, de mesa e generosos, de grande qualidade – Malvasia, Marsala e Nero d’Avola.
Palermo é a capital. A riqueza monumental é eclética, graças aos sucessivos povos que a dominaram. Também a vegetação é uma mistura exótica de espécies mediterrânicas, europeias, africanas e do novo mundo, estas devidas à influência do domínio espanhol.
A comida na Sicília é de base italiana, incluindo necessariamente as massas, mas com um forte cheiro a mar, muitas ervas aromáticas e especiarias, bem como amêndoas, pinhões e figos. A provar, a genuína cassata siciliana.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2008)
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