Ler por aí… em São Paulo, Brasil: Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus
15 de julho de 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimeticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne, 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açucar e seis cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se.
Passei o dia indisposta. Percebi que estava resfriada. A noite o peito doia-me. Comecei tussir. Resolvi não sair a noite para catar papel. Procurei meu filho João José. Ele estava na rua Felisberto de Carvalho, perto do mercadinho. O onibus atirou um garoto na calçada e a turba afluiu-se. Ele estava no nucleo. Dei-lhe uns tapas e em cinco minutos ele chegou em casa.
Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me.”
…
“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto do despejo.”
No Quarto do despejo, a autora Carolina Maria de Jesus apresenta-nos constantemente uma visão dicotômica sobre a cidade e a favela usando uma linguagem crua e directa, razão pela qual a sua obra foi escolhida como livro de destaque do mês de Maio.
O livro é considerado por muitos como a primeira obra da literatura marginal brasileira; e Carolina Maria de Jesus, autora, mulher, negra, pobre, mãe solteira, favelada, catadora de lixo, é considerada uma figura central no desenvolvimento da literatura marginal que elege a periferia como lugar de fala. Escrito na época do governo de Juscelino Kubitsheck entre os anos 1956 e 1961, o livro está encenado na favela Canindé na zona norte de São Paulo, e nele Carolina retrata as dificuldades de se viver em meio à miséria absoluta, em uma situação de extremo caos social, econômico e cultural. O universo representado por Carolina revela-se fortemente dicotômico: o luxo se opõe ao lixo, e a favela se equivale à negação da cidade:
Eu classifico São Paulo assim. O palácio é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.”
A autora narra o seu cotidiano dentro da favela em formato de diário, sua necessidade de conseguir dinheiro catando papel para comprar comida para sustentar seus filho; mostra repetidamente seu desejo de mudança social e de conquista de melhores condições para si e para seus filhos É constante a manifestação do seu desgosto de vida na favela. Descreva-a como um lugar de falta, onde falta solidariedade, comida, saúde; lugar de fome, de doença, de briga, de violência, do lixo, de pobreza, de abandono. O uso de uma linguagem directa, violenta e crua alternando momentos de poesia e de lirismo transforma o texto num relato realista sobre a vida numa favela de São Paulo nos anos 50. Porém, a sua visão sobre a favela contribui para uma leitura pejorativa sobre estes espaço. Importa, ao mesmo tempo, destacar que não é a única leitura possível, existindo numerosos artistas que apresentam relatos mais positivos sobre as favelas, representando-a por exemplo como espaço de resistência, como decorre no movimento da literatura marginal de São Paulo dos anos 2000, cujo maior representante é Ferréz.
Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus nasce em Minas Gerais por volta de 1914. Foi empregada doméstica em São Paulo e a seguir catadora de papel e de lixo. A favela de Canindé onde ela morava tornou-se cenário de um documentário. Neste contexto, ela conheceu o repórter Audálio Dantas que leu seu diário. Ao ficar impressionado pela escrita da Carolina, o repórter mostrou o texto para um editor que permitiu a publicação do livro. A escritora ganhou fama e algum dinheiro que lhe permitiu morar fora da favela, mas não conseguiu sair da pobreza. Foi quase esquecida pela imprensa e pela público e morreu em um pequeno sítio na periferia de São Paulo em 1977.
Outras obras da escritora que foram publicadas são Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963). Suas obras póstumas são Diário de Bitita (1977), Um Brasil para Brasileiros (1982), Meu Estranho Diário (1996), Antologia Pessoal (1996), Onde Estaes Felicidade (2014), Meu Sonho é Escrever – Contos Inéditos e Outros Escritos (2018)
A extraordinariedade desta escritora evidencia-se pelo facto de ser uma das primeiras a elaborar relatos que retratam a favela de dentro a partir do crivo da experiência pessoal. Desse modo, importa visibilizar a voz de uma mulher negra, pobre e moradora da favela que conseguiu tornar-se numa escritora e num símbolo da literatura marginal brasileira, apesar de ela se posicionar longe dos padrões culturais estabelecidos no e pelo cânone literário e de usar uma linguagem marginal.
São Paulo e a Favela de Canindé
São Paulo é a cidade mais populosa do Brasil, do continente americano, da Lusofonia e de todo o hemisfério Sul, tendo uma população de 21 milhões de habitantes. 11% da população da São Paulo mora nas favelas, que corresponde a cerca de 2 milhões e 310 mil habitantes.
A favela de Canindé, que faz de moldura ao livro de Carolina Maria da Jesus ,ficava na margem esquerda do rio Tietê, em uma área de 34.500 metros quadrados da Prefeitura onde se amontoavam mais de 300 barracos. Fortes chuvas castigaram a cidade entre dezembro de 1960 e fevereiro de 1961, fazendo com que a área de várzea do rio ficasse inundada. Os moradores foram retirados em sua totalidade e realocados em um conjunto habitacional no Jabaquara, no que foi durante anos um modelo de sucesso de desfavelamento na cidade.
O que significa a palavra favela? O termo favela define o nome da vegetação presente no povoado de Canudos, na Bahia, do qual provinham os ex-combatentes da Batalha de Canudos (1896-1897) que se estabeleceram no Morro da Providência (Rio de Janeiro), com suas famílias, após o fim da guerra, com a finalidade de pressionar o Ministério da Guerra a pagar seus soldos atrasados. Por lembrar o povoado de Canudos, o Morro da Providência veio a ser chamado Morro da Favella, -expressão utilizada, pela primeira vez, no livro Os Sertões: Campanha de Canudos, de Euclides de Cunha – e foi considerada a primeira favela do Rio de Janeiro; em seguida, o termo foi popularizado, e utilizado genericamente para definir os casebres construídos nas encostas da cidade.
Luana Loria
© Ler por aí… (2020)
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