Ler por aí… em São Salvador da Baía, Brasil
“No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta e vária, se estende e ramifica no Tabuão, nas Portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa do Sapateiro, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue; na mistura criaram uma cor e um som, imagem nova, original.”
A Tenda dos Milagres ficava na Ladeira do Tabuão, número 60, no limite da Baixa do Sapateiro (bairro imortalizado na canção de Ary Barroso), em São Salvador da Baía. Era uma oficina tipográfica, pertencente a Mestre Lídio Corró, que ali também “riscava milagres”, e era o ponto de encontro da gente do bairro, gente de sangue misturado de Europa e África.
Esta obra de Jorge Amado conta como Pedro Arcanjo, mulato baiano, terá contribuído para que o povo baiano e a sua cultura fossem considerados um atractivo, a incentivar e promover, em vez de algo a esconder e reprimir. Ao longo da obra, alternamos entre o plano da vida de Arcanjo e o das comemorações do centenário do seu nascimento. Jorge Amado regala-se a mostrar-nos a hipocrisia que rodeava a organização do evento.
Pedro Arcanjo viveu na época da abolição da escravatura, em que negros e mestiços, embora gradualmente conquistassem a sua liberdade, eram ainda perseguidos por tentarem viver as suas tradições, desde o candomblé à capoeira, passando pela própria comida (azeite de dendém, e seus magníficos derivados…) e o samba de roda e trios elétricos do carnaval baiano, pai do carnaval carioca.
Simples bedel da Faculdade de Medicina (que na época estava situada no Terreiro de Jesus, logo ali ao pé do Largo do Pelourinho), motivado pela revolta perante as posições racistas de alguns ilustres professores da mesma faculdade, começou a estudar o tema das raças a fim de as contrapor com lógica racionalidade. Ao longo de dez anos, a leitura transformou a revolta em curiosidade científica sistemática, e Pedro Arcanjo escreveu e publicou um livro, ‘A Vida Popular na Baía’, impresso (adivinhe-se) na tipografia de Mestre Lídio. Depois deste, Pedro Arcanjo escreveu mais três, ‘Influências Africanas nos Costumes da Baía’, ‘A Culinária Baiana – Origens e Preceitos’ e os “importantíssimos” ‘Apontamentos sobre a Mestiçagem das Famílias Baianas’.
Pedro Arcanjo era um homem apaixonado pelas mulheres, e muitas atravessam esta obra, a muitas mais se faz alusão. Todas elas eram mulheres de sangue misturado, que lhe conferiria a beleza singular, excepto uma – Kirsi, a filandesa que levou para o Norte da Europa o sangue baiano de Arcanjo.
A Tenda dos Milagres de Jorge Amado é uma ode à miscigenação das raças, à mistura de sangues que eleva os baianos e a Baía. É um livro para ler por aí… não por nos mostrar os locais em si mas a sua gente.
Proponho que leia a Tenda dos Milagres num dos muitos bares e esplanadas do Largo do Pelourinho. Nunca se sabe… pode ser aquele o Xixi dos Anjos, onde o poeta Fausto Pena afogava os seus ciúmes pela insinuante Ana Mercedes, poetisa contratada como intérprete do prestigiado Levenson. Procure o nº 60 da Ladeira do Tabuão, e depois escreva-nos para nos dizer o que lá existe. Prometemos publicar.
Jorge Amado
Jorge Amado nasceu em 1912 em Itabuna, no interior da Baía, e viveu a infância numa plantação de cacau e mais tarde em Ilhéus. Estudou em Salvador e no Rio de Janeiro, onde se dedicou ao jornalismo e se licenciou em Direito.
O seu primeiro livro, “O país do Carnaval”, foi publicado em 1931. A sua obra mostra que Jorge Amado conhecia profundamente o povo do nordeste brasileiro, os seus problemas sociais e políticos, e compromete-o ao ponto de, assumido comunista, ter os seus livros proibidos em 1937, ser preso em 1939 e em 1942 ser exilado no Uruguai (vivia-se a ditadura de Getúlio Vargas).
Depois de um período no Brasil, em que dá o seu contributo na luta contra a ditadura e a favor da democracia, é preso novamente em 1948, e volta ao exílio, desta vez em França, ex-União Soviética e ex-Checoslováquia. A fase literária de Jorge Amado durante este período é marcada pelo pendor comunista e em 1951 chega a receber o Prémio Estaline.
Já a fase seguinte, iniciada com a publicação de “Gabriela cravo e canela”, e que segue com os mais populares romances de Jorge Amado, lança-o na galeria dos grandes escritores do século XX, fazendo escola com o seu estilo sensorial e sensual.
Em 1961 entra para a Academia Brasileira de Letras, em 1994 recebe o Prémio Camões e actualmente tem a sua obra traduzida em cerca de 50 idiomas e também em braille. Faleceu em 2001, em São Salvador da Baía.
Salvador
Da Baixa do Sapateiro, o local mais emblemático é o Largo do Pelourinho, ponto de fusão de culturas e protagonista da recuperação do centro histórico da cidade, constituído principalmente por casas da época colonial, que mereceu a Salvador a declaração de Património Mundial em 1985. Aqui eram punidos os escravos que tentavam fugir para a liberdade. Sendo o local que serve de cenário a diversos romances de Jorge Amado, é nesta praça que está situada a Fundação Jorge Amado.
Salvador está situada na Baía de Todos os Santos, onde pela primeira vez os portugueses desembarcaram aquando da descoberta do Brasil, sendo por isso um lugar marcado fortemente pela história e pela tradição colonial, tendo sido capital do império. Foi aqui que D. Pedro IV, D. Pedro I do Brasil viveu e instalou a corte imperial no decorrer da independência.
A Baía foi uma das regiões onde a escravatura teve mais implantação, associada às plantações de café, cacau e açúcar durante vários séculos. Por tudo isto, visitar a Baía e a cidade de Salvador não deve resumir-se a gozar as deliciosas praias. É essencial tirar uns dias para conhecer esta cidade, a sua história e o seu povo.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2006)
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