Rumo a Casa, de Yaa Gyasi: Ler por aí… no Gana

Rumo a Casa, de Yaa Gyasi: Ler por aí… no Gana
Rumo a Casa, de Yaa Gyasi é um livro para ler numa visita à Costa do Cabo no litoral do Gana, ou a qualquer dos sessenta fortes e castelos ao longo da costa ocidental de África. Também pode ajudar-nos a compreender o Sul dos Estados Unidos ou qualquer dos outros locais ligados à economia de plantação, como o Brasil, as ilhas-paraíso das Caraíbas ou de São Tomé.
Na noite em que Effia Otcher nasceu sob o calor almiscarado da nação Fante, deflagrou um incêndio enorme na floresta que contornava o terreno do pai dela. O fogo avançou rapidamente, abrindo caminho ao longo de vários dias. Alimentava-se do ar; dormia nas cavernas e escondia-se entre as árvores; consumia tudo, sem se preocupar com a destruição que deixava atrás de si, até que chegou a uma aldeia Assante. E aí, desapareceu, fundindo-se com a noite.”
Oito gerações de uma família são aqui contadas. São duas irmãs, que são na verdade meias-irmãs, que não se conhecem e cujas vidas seguem em duas linhas paralelas (o que define as linhas paralelas é que nunca se cruzam).
E na minha aldeia temos um ditado sobre irmãs separadas. São como uma mulher e o seu reflexo, condenadas a ficarem em lados opostos do lago.”
Effia e Esi vão ficar em lados opostos do “lago”. Uma irá casar com o governador do Castelo da Costa do Cabo; a outra será capturada e presa nos calabouços do Castelo da Costa do Cabo, até ser enviada para as Américas.
Nessa altura, sentiu uma brisa a atingir-lhe os pés, vinda de pequenos buracos no chão.
– O que há lá em baixo? – Perguntou a James, e a palavra que lhe chegou, num Fante entamarelado, foi “carga”.
A seguir, trazido por essa brisa, veio o som ténue de alguém a chorar. Tão ténue que Effia pensou que estava a imaginar até que se baixou e encostou o ouvido à grade.
– James, há pessoas lá em baixo?”
São estes dois destinos que vamos acompanhar, desde o século XVIII até aos dias de hoje. Duas linhas paralelas, que não chegam a encontrar-se. Os capítulos alternam entre estas duas linhas, apresentando-nos um personagem de cada margem do “lago”, sequencialmente ao longo das sucessivas gerações. Catorze pedaços da história que lemos como catorze narrativas truncadas. Sempre relacionadas, deixam-nos em suspenso.
Mas afinal: sete gerações depois, as linhas paralelas cruzam-se finalmente, no Castelo da Costa do Cabo. O Castelo da Costa do Cabo agora é um local turístico.
– Desculpe, senhor! Quer ver castelo de escravos? Levo-o ver Castelo da Costa do Cabo. Dez cedis, senhor. Sós dez cedis. Levo-o ver lindo castelo.”
O que vamos visitar é o que ficou de uma enorme operação logística – o comércio triangular atlântico. Ainda que se diga, correctamente, que a humanidade sempre escravizou os seus iguais, isso nunca aconteceu numa escala como a que aqui se atingiu. Essa é a diferença.
Se ao longo da história da humanidade, os derrotados das guerras eram feitos escravos dos vencedores, e isto acontecia em inúmeras partes do globo, o que este livro nos apresenta é muito diferente: uma potência europeia a negociar com os povos locais e a incentivar essas guerras. A trocar seres humanos por outros produtos, incluindo mosquetes (armas). Numa escala nunca antes vista.
Foi uma enorme operação logística, que durou séculos, e que foi montada com princípios de optimização operacional, como hoje fazem as grandes companhias de bens de consumo: pontos de acumulação de stock nos locais de aprovisionamento, onde a “carga” permanece até atingir o volume necessário para encher o navio (isto é optimização logística(*)); e pontos de entreposto e distribuição próximos dos mercados de consumo. Durante séculos, com volumes de actividade massivos e de forma intensiva.
Uma vez no Gana, a visita ao Castelo da Costa do Cabo é inevitável. Mas prepare-se. Não se trata de visitar e fotografar “um lindo castelo” instagramável. É uma viagem no tempo, e um confronto com uma realidade que gostávamos que não tivesse acontecido.
(*) Quando se fala da movimentação de pessoas, fala-se em mobilidade e não em logística. Porque as pessoas vão, não são levadas. Excepto quando são levadas, em que se fala em logística. Como neste caso.
Além de Rumo a Casa, recentemente escrevi sobre outros livros que tratam o tema da escravatura: Eu, Tituba… Bruxa Negra de Salém, de Maryse Condé; Siríaco e Mister Charles, de Joaquim Arena; O Grito dos Pássaros Loucos, de Dany Laferrière; Noivado em Santo Domingo, de Heinrich von Kleist; e menos recentemente, O Vice-Rei de Ajudá, de Bruce Chatwin. Pareceu-me oportuno gravar um episódio do podcast Bagagem Literária falando de livros sobre o tema da escravatura – saiu a semana passada – ide assistir.
Yaa Gyasi

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Yaa Gyasi nasceu na pequena cidade de Mampong, na região Assante, no Gana. Quando tinha dois anos, a família mudou-se para os Estados Unidos: primeiro para o Ohio, depois para o Illinnois, o Tennessee e finalmente o Alabama.
Estudou Inglês na Universidade de Stanford, na California (é nesta universidade que se encontram finalmente as linhagens das duas irmãs de Rumo a Casa, já no século XXI) e Escrita Criativa na Universidade do Iowa.
A história que conta em Rumo a Casa surgiu na sua imaginação numa visita ao Castelo da Costa do Cabo, quando Yaa visitou o Gana como estudante de Stanford. Imagino-a num dos pátios do castelo, reparando nas clarabóias gradeadas no chão, que é o tecto dos calabouços, e a imagem a formar-se das duas irmãs, que nada sabem uma da outra, uma em cima, e a outra lá em baixo.
Rumo a Casa saiu em 2016, e depois deste primeiro romance, Yaa Gyasi publicou em 2020 Reino Transcendente, além de textos dispersos em publicações como a Granta e o The Guardian. Tem sido reconhecida por vários prémios e distinções nos Estados Unidos e em Inglaterra.
Gana: Costa do Cabo

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Costa do Cabo é o nome da região litoral mas também da cidade localizada nessa região do Gana. Este é o território dos povos Fante, a que pertencem as duas irmãs que começam esta história. Tal como os Assante, os Fante são uma sub-etnia Akan.
Foi capital da colónia britânica da Costa do Cabo, e ali se situa o Castelo da Costa do Cabo, tão importante nesta história. Ao longo de toda esta costa há vários outros castelos e fortalezas, de que destaco o Castelo de Elmina, ou Fortaleza de São Jorge da Mina, construído pelos portugueses, mais tarde conquistado pelos holandeses. Todos tinham a mesma finalidade.
Uma curiosidade: a Costa do Cabo é a origem de antepassados de Michelle Obama – uma história revelada por um testamento datado de 1850.
Gana: Nação Assante

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É o território do povo Assante que, como os Fante, é uma das etnias Akan, provenientes da zona mais a Norte do Sudão Ocidental. Os Assante formaram um importante império no séculos XVII e ofereceram resistência à dominação europeia de portugueses, dinamarqueses, holandeses e ingleses. A capital da região é Kumasi, cidade com um importante papel na história de Rumo a Casa.
Há várias referências à cultura Assante em Rumo a Casa: a língua twi (língua oficial da região), os panos kente (de seda e algodão, tecidos em complexos motivos geométricos que encerram mensagens simbólicas e rituais), o fufu (semelhante ao funge, mas diferente). A arquitectura Assante, com decorações em baixo relevo e coloridas de ocre, pode ser apreciada sobretudo na região de Kumasi. É reconhecida pela UNESCO como Património da Humanidade.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2024)




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