Ler por aí… na Pérsia (Irão)
Odes ao Vinho
Vinho! O meu coração enfermo quer este remédio!
Vinho de perfume almiscarado! Vinho, cor de rosas!
Vinho, para extinguir o incêndio da minha tristeza!
Vinho e o teu alaúde de cordas de seda, ó minha bem-amada!”
Senta-te e bebe.
Gozarás de uma felicidade que Mahmud nunca conheceu.
Escuta as melodias que exalam os alaúdes dos amantes:
são os verdadeiros salmos de David.”
Vinho! Vinho a jorros!
Que ele palpite nas minhas veias!
Que ele fervilhe na minha cabeça!
Taças… Não fales! Tudo é mentira. Taças… Depressa! Eu já envelheci…”
Acabou o Ramadão.
Corpos esgotados, almas esvaídas, volta a alegria!
Os jograis sabem histórias novas.
Os vendedores de vinho (os mercadores de sonho) lançam os seus apelos.”
(rubaiyat traduzidos pelo Luís Serpa)
Há alguns anos fui jantar a um restaurante turco de Lisboa. Pedi a lista dos vinhos e o senhor respondeu-me que não tinha lista, porque não queria ter nada a ver com a venda de álcool. “Sou muçulmano, não toco em álcool. Quem o vende são os meus empregados; eles compram, vendem e ficam com o lucro todo. Vou chamá-lo.”
No dia seguinte eu ia fazer uma leitura das “Odes ao Vinho” de Omar Khayyam (o título é o da edição da Morais de 1970, tradução de E. M. de Melo e Castro, o meu primeiro contacto com os Rubaiyat) e lembrei-me de o dizer ao proprietário do restaurante:
– Amanhã vou ler os Rubaiyat de Khayyam.
– Khayyam! Esse bandido! – A resposta veio veemente, repentina, honesta.
Omar Khayyam nasceu em 1048 e morreu em 1131…
Como todas as boas histórias, esta tem várias lições, uma das quais é a fantástica modernidade de Khayyam (outra sendo a estranha relação dos muçulmanos com o tempo: é como se o passado não existisse. Isto dito, Khayyam teve uma ligação bastante indirecta à Ordem dos Hashishins – era amigo íntimo do fundador da ordem – o que lhe valeu alguns dissabores, suspeitas e talvez justifique o nada simpático epíteto do amável e crente proprietário do restaurante turco).
Na verdade, Khayyam teve bastantes dissabores em vida não só por causa das suas amizades mas também – e creio que sobretudo – devido aos escritos, os Rubaiyat de onde provêm as Odes ao Vinho.
Khayyam era filósofo, geómetra, astrónomo, matemático, cientista e autor de Ruba’i – quadras –. Era conhecido e reconhecido como cientista e talvez tenha sido isso que lhe salvou a vida – ou pelo menos ajudou-o a evitar castigos mais graves devido aos seus poemas. Foi conselheiro de princípes, califas, ministros, reis; ajudou a reformar o calendário iraniano então em vigor, escreveu tratados de álgebra, filosofia, ensinou, foi discipulo de Avicena, provavelmente o mais importante filósofo e cientista da “Idade de Ouro Islâmica”.
Hoje Khayyam é conhecido de um público vasto e que excede largamente os amadores de história da ciência devido aos seu Rubaiyat. Comecemos pelo princípio: um Ruba’i é um poema de dois versos, cada um com duas partes (hemistícios). É uma quadra (rubai vem do termo árabe que significa quatro), com constrangimentos formais extremamente rígidos, tanto na métrica como na rímica (este é um ponto importante a reter. Fernando Pessoa, ele-mesmo um grande admirador de Khayyam, escreveu Rubaiyat em português que respeitam essas exigências formais!).
Os Rubaiyat de Khayyam têm por tema o vinho, o amor, a busca de prazer. Mais epicurianos do que hedonistas, carpe diem avant la lettre, por vezes quase zen mas não fatalistas, são dos poemas mais bonitos que conheço à vida.
Luís Serpa
© Ler por aí… (2017)
Omar Kahiyam
Omar Khayyam nasceu em Nishapur (norte do actual Irão) em 18 de Maio de 1048. Quando fez 18 anos, deu-se a passagem do cometa Halley – poderá ter sido este facto que o levou a interessar-se por astronomia? Não sabemos. Sabemos que, a convite do Sultão Malik Shah, fundou o Observatório de Merv (grande centro de conhecimento islâmico na região do actual Turquemenistão) e que fez o cálculo mais preciso, até à data de hoje, da duração do ano solar. Que viveu a maior parte da sua vida adulta em Samarcanda (actual Uzbequistão), onde produziu os tratados de álgebra e geometria que ainda hoje são referências importantes no estudo da matemática. Que além de astrónomo e matemático, foi filósofo, e poeta.
Khayyam morreu em 1131, e foi enterrado, poeticamente, num pomar que florescia duas vezes por ano, conforme fora seu desejo. Desde 1963, os seus restos mortais repousam num mausoléu em Nishapur.
A antiga Pérsia; o actual Irão
Na época de Omar Khayyam, Nishapur, na província do Khorasan, no nordeste do Irão, era uma importante cidade mercantil da Rota da Seda, e marcava a passagem entre a Pérsia e a Ásia. Era um importante centro político no Império Seljúcida, e industrial, devido à produção de cerâmica vidrada, tapeçarias, e exploração de minas de turquesas.
Menos de um século após a sua morte, a cidade foi arrasada por uma invasão mongol. Diz-se que Genghis Khan terá ordenado o massacre de quase dois milhões de pessoas na região de Nishapur.
Nos dias de hoje, uma viagem ao Irão vale pela imensa herança histórica e cultural. São 20 locais classificados como Património Cultural da Humanidade pela Unesco; e 11 as artes inscritas como Património Imaterial. Não é de espantar. O Irão está situado na região que aprendemos a chamar de “Crescente Fértil”, onde a aventura da civilização sedentária, urbana, se inicia. O trigo Kamut, ou trigo do Khorasan, tem origem aqui.
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O comentário do dono do restaurante é sintomático de certas pessoas nessa área, não só iranianos como de outras raças. Quando a religião se torna fanatismo, está tudo estragado; muito especialmente, a ciência e a cultura.