Ler por aí… em viagem pelo Oriente
“Mas porque o que então era costume dar-se nas casas dos príncipes me não bastasse para minha sustentação, determinei embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, já disposto a toda a ventura, ou má ou boa, que me sucedesse”. (Cap. 1, pág. 26)
“Havendo só dezassete dias que eu era chegado a esta fortaleza de Diu, onde se faziam prestes duas fustas para irem ao estreito de Meca, para saberem a certeza da armada dos Turcos, de que já na Índia havia algum receio, me embarquei em uma delas, da qual ia como capitão um meu amigo, por me fazer ele grande encarecimento [sic] da sua amizade naquela viagem, mostrando-me muito fácil sair eu dela muito rico em pouco tempo, que era então o que eu mais pretendia que tudo.” (Cap. 3, pág. 28)
Peregrinação
Fernão Mendes Pinto diz ao que vai e com isto ao que todos iam. Esta obra satírica é um livro de moral disfarçado de livro de aventuras. Sátira da colonização portuguesa, a Peregrinação usa todos as ferramentas da literatura satírica: do pícaro ao ingénuo, do bondoso ao herói, Fernão Mendes Pinto encarna todas as personae da sátira.
Há dois aspectos da obra que sobressaem: uma é a qualidade da escrita. Para alguém originário de uma família pobre, com poucos estudos, Fernão Mendes Pinto escreve com uma beleza e um sentido da forma extraordinários. A outra é o ritmos dos episódios. As histórias sucedem-se na Peregrinação sem um intervalo e quando os há são postos de lado muito rapidamente. Se Stanley Kubrick tivesse levado a cabo o seu plano de a filmar, o filme teria feito passar qualquer Rambo ou Robotcop por uma fita de Manuel de Oliveira. A narrativa é frenética, desde o início: o herói começa a sua história a correr, sem nos dizer porquê. Apenas sabemos que lhe “sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude”. Tinha então onze anos e meio ou treze anos e meio, como se pode deduzir pelo texto anterior: “digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze anos na miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai … porque havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora…” (Não deixa de ser estranho numa obra caracterizada pela obsessão da enumeração o autor não se lembre da idade em que veio para Lisboa).
A Peregrinação é uma obra de leituras múltiplas: sátira, utopia, aventura, filosofia; lê-la é um prazer inesgotável. Há episódios de todos os tipos e feitios: hilariantes, aterradores, fascinantes, informativos, religiosos, teatrais. Todos têm a uni-los o gozo que é avançar na leitura como quem faz uma manta de retalhos, juntando-os uns aos outros para formar um quadro multidimensional do autor, da obra, da época e da geografia.
Jantar a Ler por aí… Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, em viagem pelo Oriente
Fernão Mendes Pinto
Fernão Mendes Pinto nasceu em Montemor-o-Velho entre 1510 e 1514 e morreu em Almada em 1583. Vinha de uma família modesta, talvez da pequena aristocracia mas sem dinheiro (ele próprio refere-se à casa de seus pais como sendo “pobre” e nela vivia “na miséria e na estreiteza”).
Em 1537 foi para a Índia, com o objectivo explícito da ganhar dinheiro. Di-lo duas vezes logo no início da sua obra, a Peregrinação.
Percorre a Ásia – uma Ásia quase utópica, como veremos – em todas as condições sociais, desde escravo a diplomata, passando por guerreiro, comerciante, religioso da companhia de Jesus. Foi um dos primeiros portugueses a chegar ao Japão, onde poderá ter introduzido as armas de fogo.
Morreu esperando uma tença que lhe fora prometida, mas nunca entregue.
Jantar a Ler por aí… Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, em viagem pelo Oriente
Oriente
A Peregrinação começa em Lisboa com a jovem personagem do autor a correr para salvar a vida e acaba em Almada, com o autor sábio, reconciliado com a vida. “Mas ainda que isto seja assim, não deixo de entender que ficar eu sem a satisfação que pretendia por tantos trabalhos e por tantos serviços, procedeu mais da providência divina que o permitiu assim por meus pecados, que de descuido ou falta alguma que houvesse em quem por ordem do céu tinha a seu cargo satisfazer-me…”
Enter o frenesim do início e o apaziguamento do fim Fernão percorreu Portugal, o Norte de África, a Etiópia, a Índia, a Arábia, Malaca, o Japão, a China… Muitos dos locais que descreve não são identificáveis. É uma Ásia bastante real – a da colonização portuguesa – e meio utópica, onde ele faz acontecer as suas críticas à colonização portuguesa, à Companhia de Jesus, ao sistema judicial e outras instituições portuguesas. Uma geografia metade real, metade irreal, que nos traz à mente as palavras de James Baldwin: “O mundo é sempre mais pequeno do que o viajante que nele viaja”.
Luís Serpa
© Ler por aí… (2019)
(Citações provenientes da edição da Peregrinação da Relógio d’Água, versão de Maria Alberta Menères, Lisboa, 2001)
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