Madre Paula, Rainha na Sombra, de Ricardo Costa Correia: Ler por aí… em Odivelas

Madre Paula, Rainha na Sombra, de Ricardo Costa Correia: Ler por aí… em Odivelas
– PAULA!
O grito do rei dom João V ouviu-se pelos corredores que uniam os aposentos reais aos grandes salões, fazendo mesmo estremecer tapeçarias e pinturas. Havia naquele grito tanto de ódio, como de paixão, tanto de dor e sofrimento, como de amor e afeto.“
Como se compreende ao ler este excerto que abre o Prólogo, a acção deste livro não se cinge a Odivelas. Esta cena é passada no desaparecido Paço Real da Ribeira, onde é hoje o Terreiro do Paço, em Lisboa. Ao longo da narrativa, há muitos espaços da Lisboa pré-terramoto que nos são mostrados. E se é fácil encontrar livros que nos guiem em Lisboa, mesmo na Lisboa pré-terramoto, o mesmo não se passa em relação a Odivelas e ao seu mosteiro. Neste território, Madre Paula, Rainha na Sombra é um dos poucos livros (quase arrisco a dizer que é o único, pelo menos no registo da ficção…) que nos pode ajudar.
Como nos é explicado na Nota do Autor, Madre Paula é uma figura histórica de que se sabe muito pouco. O que este livro nos dá a conhecer é uma Paula humana, a três dimensões, partindo dos escassos dados documentados e fantasiando tudo o resto de forma muito verosímil. Dá-nos a conhecer a mulher fascinante que ela provavelmente foi, bem como os espaços em que ela se terá movimentado, tanto no mosteiro como em Lisboa. Quem nos conta a sua história, e ao então príncipe D. José, é Alexandre de Gusmão, secretário do rei:
Dom José sentou-se na beira da cama, ávido pelas palavras de Gusmão.
– Deixai-me, então, que vos conte tudo o que sei sobre Paula Teresa da Silva e Almeida, a Madre Paula de Odivelas.”
Em Lisboa, vejamos os locais por onde passamos ao ler este livro, e convido-vos a imaginar esta cidade como ela foi até ao terramoto de 1755.
Já foi mencionado o Paço da Ribeira. Os seus interiores são apresentados na narrativa com toda a vivacidade: a Sala do Trono, a Sala dos Despachos e os demais aposentos, corredores, escadarias e logradouros. Aí encontramos D. João V, sua consorte Maria Ana de Áustria, e o príncipe herdeiro D. José. Do lado direito do paço estaria a Alfândega e do lado esquerdo estaria a Casa da Índia com os seus jardins, por onde Paula se passeia, ainda antes de se tornar soror Paula. Foi ali que conheceu Sebastião José, na época um jovem em busca de oportunidades. Logo a seguir ficaria a Igreja Patriarcal, coincidindo com o actual Largo do Município. O Terreiro do Paço era palco das maiores festividades da cidade:
O Terreiro do Paço estava preparado para os aniversários do casamento e do próprio Rei. As bancadas foram viradas para a tribuna real, decorada com veludos e tapetes ricamente bordados a fio de ouro e prata.
(…)
Para as festas, dom João V preparara um espectáculo que começaria com as demonstrações das artes equestres, passaria pelo lidar de vários touros, havendo até um bezerro para que os jovens nobres demonstrassem as suas habilidades na lida. Para o fim, estava guardado o maior dos entretenimentos para o público: o auto-de-fé.“
Seguindo para Norte, passamos pela Rua Nova d’El-Rei para a Rua dos Ourives do Ouro, uma das sinuosas ruas da Lisboa de então, ruas animadas de comércio, tal como viria a ser o mesmo local, a Baixa. Nessa rua vivia Paula antes de ingressar no mosteiro, com o seu pai, um dos mais notáveis ourives da cidade.
O Rossio teria no topo (na posição hoje ocupada pelo Teatro Nacional D. Maria II) o Palácio dos Estaus, sede da Inquisição. Ali encontramos o Inquisidor-Mor e assistimos aos seus encontros e conversas mais secretas. Do lado direito estaria o Hospital de Todos os Santos.
O Rossio parecia uma praça desprovida de pulsação quando não era dia de feira. Apenas uma carruagem circulava pela areia daquele terreiro e alguns burgueses conversavam, além de um par de religiosos que faziam o mesmo junto da Rua Nova d’El Rei.”
É também interessante imaginar o trajecto que D. João V fazia para visitar Paula, desde Lisboa até Odivelas, passando por terrenos que hoje são cidade. Saindo do Paço Real, atravessava então o emaranhado de ruas onde hoje está a Baixa, em direcção ao Rossio, subindo depois Valverde (onde temos hoje a Avenida da Liberdade), “em direcção aos terrenos próximos do Marquês de Marialva, onde se construía o chafariz que iria fornecer água corrente a Lisboa” (penso que seria na zona do actual Largo do Rato). Seguindo sempre para Norte, “avistam o palácio de dom Diogo de Sousa” (julgo tratar-se do actual Palácio Pimenta, no Campo Grande) pelas “azinhagas que atravessam as terras do Monteiro Mor, o Marquês de Alegrete” (actual zona do Lumiar) e por aquilo que é hoje a Calçada de Carriche, que seriam então “coutadas de caça e bosques repletos de vida selvagem”, acompanhando o Rio da Costa em direcção a Odivelas.
Em Odivelas, o local que marca o livro é seguramente o Mosteiro de São Dinis e São Bernardo. Este era o local dos encontros amorosos, não de Madre Paula e D. João V mas de Paula e João, mulher e homem, seres humanos que amam. E que têm conversas de almofada. Foi nesta alcova que se pesaram prós e contras e se tomaram decisões, ele e ela, o rei e a sua rainha (ainda que na sombra).
Os aposentos de Madre Paula sobreviveram ao terramoto mas foram demolidos já quando o edifício era utilizado como colégio feminino – para que não inspirasse as jovens com maus exemplos. Tinham ligação com o interior da igreja:
Em Odivelas, a vida de Paula retomava aos poucos a normalidade. Afastada ainda das restantes companheiras, assistia à missa por uma janela ao lado do coro alto, ligada directamente aos seus aposentos.”
A portaria do mosteiro era o ponto de contacto entre o dentro e o fora. Mas D. João V terá criado um outro, só dele, quando comprou as casas contíguas ao mosteiro para assim entrar directa e discretamente para os aposentos da sua amada.
Outras zonas dentro do mosteiro e no seu perímetro surgem na narrativa, como os claustros e a cozinha, no interior, e o adro, o poço, as oficinas e os estábulos, na parte exterior.
Além de Odivelas e Lisboa, o romance leva-nos a mais dois locais: Mafra e Santo Antão do Tojal.
Mafra foi um dos empreendimentos mais marcantes do reinado de D. João V e serviu muitas vezes de alibi ao rei nas suas sorrateiras saídas, pois Odivelas ficava precisamente no caminho para Mafra. Aqui assistimos a uma importante celebração:
A sagração da Basílica de Mafra ocorreu no dia do quadragésimo primeiro aniversário do rei. Populaça e membros da corte reuniram-se no terreiro do enorme palácio e na escadaria de acesso para assistirem à chegada de suas majestades. O sol brilhava sobre todos os presentes, apesar de a aragem própria do outono fazer-se sentir.
Era impossível ficar indiferente perante as ricas dimensões de Mafra. Projectado por Johann Ludwig, o tal a quem toda a corte portuguesa se habituara a chamar de Ludovice, revelava a grandiosidade e o esplendor que dom João V procurava dar-lhe.”
Santo Antão do Tojal é o local do Palácio dos Arcebispos, mandado construir por D. Tomás de Almeida, o arcebispo de Lisboa ao tempo de D. João V. Tinha já um pequeno aqueduto que terá inspirado a construção do grande, o das Águas Livres.
Ricardo Costa Correia

Ricardo Costa Correia nasceu em Lisboa, e o seu gosto pela leitura e pela História de Portugal nasceu no ambiente familiar, apesar de acabar por se formar em engenharia civil. Publicou O Segredo dos Bragança em 2017 e a trilogia O Regresso do Desejado em 2018 (Ascensão), 2019 (Inquisição) e 2020 (Redenção). Para divulgar esta trilogia, Ricardo Costa Correia percorreu o país com as recriações históricas que nos fizeram viajar até à época de Dom Sebastião. Madre Paula, Rainha na Sombra é o seu livro mais recente, foi publicado em 2022 e apresentado no Mosteiro de São Dinis de Odivelas.
Odivelas

Não é a primeira ideia que nos vem à cabeça quando nos apetece dar um passeio. Odivelas é um subúrbio de Lisboa, sofrendo de sobre-população, sobre-construção, sobre-urbanização. É por isso que é surpreendente!
O concelho é um dos mais recentes do país, desanexando-se de Loures em 1998. Faz parte da zona saloia da cidade de Lisboa, uma coroa campestre que alimentava a população lisboeta fornecendo frutas e legumes, aves e ovos, queijos, caça… e água.
Talvez a localidade mais saloia de todas seja Caneças, cenário do filme Aldeia da Roupa Branca (1938), imortalizando as lavadeiras de Caneças. Tanto as lavadeiras como os aguadeiros foram figuras imprescindíveis na cidade até à generalização da água canalizada nos lares lisboetas na década de 1940.
Por aqui se percebe que a água nunca foi suficiente em Lisboa e que a rede de ribeiras e nascentes existente na região saloia teve desde sempre um papel essencial no quotidiano da cidade. Graças a esta abundância de boas águas, Odivelas e as suas aldeias estão pejadas de fontes, fontanários e chafarizes que contam histórias. Vale a pena o passeio, afinal.
Mas o grande ponto de interesse de Odivelas é sem dúvida o Mosteiro de São Dinis e São Bernardo, classificado como Monumento Nacional desde 1910. Nele está sepultado o nosso rei D. Dinis. Madre Paula pisou estas lages e estes soalhos, viveu dentro destas paredes. Grande parte dos locais onde o livro coloca a acção desapareceram com o terramoto de 1755. Outras áreas do mosteiro foram reconstruídas, acomodando e testemunhando novos tempos: a igreja, a cozinha, o refeitório e os claustros mantém o gótico que foi possível e juntam-lhe o gosto neoclássico pós-terramoto. Felizmente, alguns azulejos sobreviveram, bem como o túmulo de D. Dinis. Fiel continua a marmelada branca, produzida conforme as secretas receitas das monjas, e como na época, a seduzir-nos com doçuras.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2024)



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