Sobre fazer o luto dos livros…
Sobre fazer o luto dos livros… Também vos acontece?
Fiz recentemente uma pequena sondagem, numa story do instagram, onde respondeu a representativa amostra de cinco pessoas. Helas. Perguntava eu “E tu? Também fazes o luto dos livros?” Eis os resultados:
- 20% respondeu “Sempre, pelo menos dois dias.”
- Também 20% respondeu “Depende dos livros, há uns que nos destroçam…“
- A resposta mais votada, com uns esmagadores 40%, foi “Depende mais de mim, do meu estado de espírito.”
- E finalmente, os restantes 20% responderam “Nunca, é sempre a andar!“
Depende do estado de espírito
Confesso que fiquei surpreendida com o peso da terceira resposta: “Depende mais de mim, do meu estado de espírito.” Não via esta questão como circunstancial. Para mim, fazer ou não um luto depois da leitura de um livro era mais um daqueles atributos que nos permitem dividir o mundo em duas metades desiguais – assim como há as pessoas “cão” e as pessoas “gato”, as pessoas “nestum” e as pessoas “cerelac”, as pessoas “arial” e as pessoas “times new roman”, também haveria as pessoas “que fazem o luto dos livros” e as pessoas “que não fazem o luto dos livros”.
Mas não! Para grande parte dos leitores, isso depende – mais do que do livro, depende do estado de espírito!
Ora bem. Esta seria matéria para se esmiuçar mas, apenas perante estes dados, dou por mim a especular… Portanto, o leitor acaba de ler um livro. Se gostou ou não do livro, isso é indiferente, caso contrário teria respondido “Depende dos livros, há uns que nos destroçam…” Dizia eu, o leitor acaba de ler o livro e pega logo noutro – ou seja, não faz o luto. Que estados de espírito poderão estar presentes nesta decisão?
Talvez se trate de um leitor muito organizado e já saiba o que vai ler a seguir. Este é um factor que facilita muito o fluxo de livros na nossa vida e é até um dos conselhos que se dão a quem pretende desenvolver o hábito da leitura. Se a nova leitura for muito excitante, o efeito é ainda maior.
Ou então, o leitor sente-se esmagado pela sua pilha de livros por ler e sente que, se perder ali dois ou três dias a digerir, está a atrasar-se… Ou, quem sabe, tem algum compromisso, como um clube ou projecto de leitura, com tempos definidos. Talvez esteja a necessitar de ser continuamente estimulado por novas leituras, novas sensações, novas histórias, atmosferas e personagens. Talvez esteja de férias e queira aproveitar bem os dias para dar cabo de mais um livro.
Agora olhemos para a situação inversa: o nosso leitor acaba de ler um livro (não importa se gostou ou não da leitura, como já vimos) e espera uns dias até pegar noutro. Faz o tal luto do livro. Que estados de espírito podemos encontrar aqui?
Talvez seja um leitor que se canse facilmente com a actividade da leitura, e precise de descansar entre livros. Ou talvez, de novo, precise de estímulos constantes, mas neste caso, acaba cedendo a outros apelos: ver uma série em maratona, ir a um festival ou fazer um retiro na natureza, por exemplo. Ou então, simplesmente, não lhe apeteceu outro livro naquele momento.
Depende do livro lido
20% dos leitores que responderam à pergunta “E tu? Também fazes o luto dos livros?” responderam “Depende dos livros, há uns que nos destroçam…” Bom. Então, neste caso, temos o leitor que acaba de ler um livro e a decisão de pegar logo noutro – ou não – depende do livro que acabou de terminar. O que é que o livro acabado poderá ter que leve o nosso leitor a pegar – ou não – noutro livro logo a seguir?
Uma das possibilidades já está incluída na resposta: há realmente livros que nos destroçam. Este é o caso em que, para mim, é mais necessário fazer um luto. A primeira vez em que tal me aconteceu foi com A Casa do Pó de Fernando Campos – já o li há uns trinta anos, mas lembro-me perfeitamente de chorar inconsolável quando o terminei. Não me lembro do fim de Frei Pantaleão de Aveiro, mas lembro-me de ter ficado destroçada! Precisei de fazer um luto por ele.
Depois, temos aqueles livros em que gostamos tanto das personagens, ou da atmosfera do livro, que não queremos abandoná-las. Ou então o enredo, ou a escrita, são muito intensos e não comportam novos estímulos – há livros que é preciso digerir.
Por oposição, temos o leitor que, mal acaba de ler um livro, pega logo no seguinte – não fazendo uma pausa entre os dois – portanto, não fazendo o luto do livro que acabou de fechar. A razão mais óbvia que vejo para isto acontecer (dependente do livro terminado, lembro) é este ser um livro com continuação – fazer parte de uma saga ou de uma série – e o próximo livro ser a continuação do anterior. Faz sentido, neste caso, não se fazer uma pausa. Continua-se no mesmo ambiente, em companhia das mesmas personagens, e segue-se na mesma história. Fazer luto de quê?
Outra possibilidade é o leitor começar a ler outro livro logo a seguir porque o livro terminado não era bom. Não gostou da leitura, e precisa de limpar o palato, digamos.
Sem “dependes”
A verdade é que os restantes 40% da amostra são peremptórios: ou fazem o luto dos livros sempre, ou não o fazem nunca! Ou seja, para estes, a questão de se fazer ou não o luto dos livros não é de todo circunstancial – não depende do estado de espírito, nem depende do livro.
Tendo a incluir-me no primeiro grupo. Tendo a fazer sempre uma pausa de dois ou três dias entre livros. A verdade é que, desde que giro as minhas leituras desta forma, deixando os livros pousar, acomodar-se dentro de mim, lembro-me melhor das histórias.
Quando aos leitores que nunca fazem pausas, nunca precisam de fazer um luto pelos livros que lêem, estão a perder uma parte importante da experiência da leitura. Na minha opinião, claro. A este propósito, convido-vos a (re)ler o meu artigo Da quantificação da leitura. Escrevi-o há um ano, justamente a meio do ano de 2023, como agora estamos a meio de 2024. O meio do ano convida-me a estas reflexões.
Esta pequena sondagem não tem qualquer valor. Se quiséssemos ser exaustivos e rigorosos, faltariam aqui mais algumas respostas possíveis. Por exemplo, no campo dos “dependes”, ao lado do “depende do livro” lido haveria “depende do livro” seguinte. Não importa. Foi só um divertimento.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2024)
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