Ler por aí… na Lusitânia, Portugal Romano

“Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta mediocridade dourada, pese o convite e o consolo do poeta que a acolheu. Também a mim, como ao orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. Os dias arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cómodo impera, passei o que passei, peno longe, como ser feliz?”
Caro Mário,
Permita-me perguntar-lhe: onde imaginou Tarcisis?
A Lusitânia, província do império romano, ocupava o sudoeste da península ibérica. Em Tarcisis, cidade da Lusitânia, estamos seguramente, afastados do Guadiana e do mar: as cinzas de Trifeno “seriam lançadas lá longe, no Anas”; e a certo ponto chega “um carregamento de garum e sardinhas frescas do litoral”.
O Mário refere outras cidades da Lusitânia – Emerita (Mérida, a capital da província romana da Lusitânia), Miróbriga (perto de Santiago do Cacém), Ossónoba (Faro), Vipasca (Aljustrel) – que ficam assim excluídas das possibilidades – seriam sempre excluídas, uma vez que Tarcisis é uma cidade ficcionada.
Assim, Tarcisis representa uma qualquer urbe romana da Lusitânia e, espero que não o incomode, Mário, sinto-me livre para a situar no Baixo Alentejo. Não encontrei referências a Mirtilis Julia (Mértola), nas margens do Guadiana. Ocorre-me aquela passagem em que o nosso protagonista se afasta de casa e deambula pela margem do rio. No entanto, tinhamos concluido que o Anas era longe. Mesmo assim. Nesse passeio junto ao rio, vemos aquela criança, “um escravozito apanhava amoras”. Um pormenor, ou uma pista?
Por outro lado, não me recordo de nenhuma referência a Pax Julia (Beja). É nas imediações de Beja que descubro umas ruínas, em razoável estado de conservação (para umas ruínas romanas), as ruínas de Pisões. Imagino que estas ruínas são da casa de campo (de exílio) do nosso Lúcio Valério Quício. Poderiam ser, não poderiam, Mário?
Seja como for, e onde quer que se situem estes lugares na imaginação de cada um de nós dois, estamos num território ameaçado, e isto faz-me tanto lembrar os dias que vivemos, Mário: perante a ameaça séria, de invasões bárbaras – dos mouros da Tingitânia (no Norte de África), o povo prossegue na sua vida quotidiana, entretido com assuntos que hoje classificaríamos como mediáticos, enquanto os homens influentes manobram a opinião pública, e se recusam a participar nas decisões da cidade. Este homem, o nosso protagonista, o dúunviro Lúcio Valério Quincio, vê-se abandonado à solidão do poder, carregando sozinho o peso de decisões difíceis, e por fim condenado ao exílio.
Seja onde for esta cidade, encontramos nas suas páginas uma sociedade que se orgulha da sua romanidade, e não abdica da sofisticação civilizada dos detalhes, mesmo sem ter ao seu dispor, como nós, a sofisticação dos meios e da tecnologia. Assim, Lúcio manda “atear o hipocausto”: para que houvesse água quente nas termas, era necessário fazer lume. São pormenores de que gosto, Mário, que nos traz sem fazer deste livro uma feira de antiguidades romanas.
Mário de Carvalho

Mário de Carvalho nasceu em Lisboa em 1944, numa família com origem no Alentejo. Em criança, presenciou de forma muito próxima (na pessoa do pai) a opressão do regime do Estado Novo, e enquanto estudante envolveu-se em movimentos contra o regime, chegando a ser preso e torturado. Partiu para um exílio em Paris e em Lund, na Suécia, de onde regressou logo após a revolução de 1974. Publicou o seu primeiro livro – Contos da Sétima Esfera – em 1981, na Vega. Segue publicando, com perto de 30 obras elencadas na sua página pessoal, traduções em dez línguas e muitos prémios. Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde foi publicado pela primeira vez em 1994, pela Caminho, e conta quatro prémios: o Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB, o Prémio Fernando Namora, o Prémio Pégaso Internacional de Literatura e o Prémio Literário Giuseppe Acerbi.
Lusitânia

Já não somos os lusitanos, e Portugal já não é igual à Lusitânia. O que somos hoje é a soma do que foram a Lusitânia e os lusitanos (que por sua vez já eram a soma de muitas e diversas culturas, que já cá existiam e que chegaram antes dos romanos) com as culturas e povos que entretanto chegaram após os romanos. Ainda assim, é grande a herança romana, e resistente. Mais na sua manifestação cultural imaterial, não tanto no aspecto material. De facto, neste temos sobretudo ruínas e cacos.
As ruínas de Pisões, nos arredores de Beja, constituem um importante documento da romanidade lusitana. Na parte doméstica, podem ver-se, alguns bastante bem conservados, mosaicos no chão e frescos nas paredes, e a zona termal, segundo Carlos Castela, do blog Portugal Notável, poderia voltar a funcionar apenas com pequenos trabalhos de reparação.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2017)
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