Ler por aí… em Lisboa, Portugal: Requiem, de Antonio Tabucchi
Pensei: o gajo nunca mais chega. e depois pensei: não posso chamar-lhe ‘gajo’, é um grande poeta, talvez o maior poeta do século vinte, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho. Mas entretanto começava a aborrecer-me, o sol dardejava, o sol do fim de Julho, e pensei ainda: estou de férias, estava tão bem lá em Azeitão, na quinta dos meus amigos, por que é que aceitei este encontro aqui no cais? tudo isto é absurdo. E olhei aos meus pés a silhueta da minha sombra, e também me pareceu absurda, incongruente, não tinha sentido, era uma silhueta curta, esmagada pelo sol do meio-dia, e foi então que me lembrei: ele tinha marcado às doze, mas talvez quisesse dizer doze da noite, porque os fantasmas aparecem à meia-noite. Levantei-me e percorri o cais. Na avenida o trânsito tinha parado, passavam poucos carros, alguns com chapéus-de-sol no porta bagagem, era tudo gente que ia para as praias da Caparica, estava um dia quentíssimo, pensei: o que faço eu aqui no último domingo de Julho? e acelerei o passo para ver se chegava o mais rapidamente possível a Santos, talvez no jardim estivesse um pouco mais fresco.”
Caros leitores,
Embora não possamos sair de casa, podemos sonhar e cirandar por Lisboa, mesmo estando esparramados nos nossos confortáveis sofás. Fiquem em casa e leiam “Requiem”, da autoria de António Tabucchi, um escritor ítalo-português.
Agora, a vossa pergunta será: um autor ítalo-português? E quem é? Existiu a sério ou é uma das tantas invenções de Fernando Pessoa, que – coitado! – tinha a cabeça cheia de existências alheias?
Não, meus caros leitores, se bem que António Tabucchi tivesse uma intensa ligação com Fernando Pessoa, existiu, em carne e osso. Deixem-me brevemente apresentá-lo, a ele e ao seu único livro escrito nesta belíssima língua, o português, que vocês, por vezes, maltratam.
“A língua portuguesa é como uma doença: apanha-se.” António Tabucchi, escritor, filólogo e especialista em Estudos Pessoanos de reconhecido mérito, lacrava o seu amor pelo idioma de Camões; e também de Pessoa, se quisermos, já que, sem o grande poeta português do século XX, provavelmente Tabucchi nem teria desembarcado no cais literário lusitano. De facto, “Requiem”, único livro de Tabucchi escrito em português, língua que considerava um lugar de afeto e de reflexão, principia assim:
Pensei: o gajo nunca mais chega. E depois pensei: não posso chamar-lhe «gajo», é um grande poeta, talvez o maior poeta do século vinte, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho.”
O “gajo” a que o autor se refere é O Convidado, com quem Tabucchi, personagem principal desta narração, marca um encontro que, só depois de uma série de peripécias pela cidade de Lisboa, acaba por ter lugar. Ao longo desta aventura, sob o sol estafante do último domingo de julho, o autor leva pela mão os seus leitores a dar um passeio pela cidade de Lisboa. Nela encontra pessoas já falecidas (o Meu Pai Jovem e Tadeus) e outras vivas (o Cauteleiro Coxo, o Rapaz Drogado, o Chauffeur de Táxi, a Velha Cigana e Casimiro e a sua esposa, donos de um restaurante), entre muitos outros, todos eles envolvidos numa atmosfera surreal, onírica.
Este sonho não é feito apenas de pessoas, como também de lugares e sabores. A personagem principal, partindo de Azeitão, desloca-se a vários sítios da cidade de Lisboa, começando pelo cais de Alcântara (onde se tinha de encontrar com o Poeta às 12h00), para, sucessivamente, ir de táxi até à Brasileira e daí ao Cemitério dos Prazeres, onde consome a sua garrafa de champagne com o amigo Tadeus, o qual lhe oferece um almoço tipicamente minhoto (um delicioso sarrabulho) no restaurante de Casimiro. Mas a viagem continua… a personagem passa pelo Museu de Arte Antiga, pela Praça da Figueira e muitos outros lugares. É um sonho repleto de conversas, encontros e, no fundo, também de saudade.
Através deste livro, Tabucchi prestou uma homenagem ao seu país adotivo, Portugal, e a um povo que gostou dele e de que ele também gostou, como escreve na Nota.
Obrigado pela vossa atenção e boas leituras!
Matteo Pupillo
©2020 Ler por aí…
*O autor deste artigo segue o Acordo Ortográfico
Antonio Tabucchi
Antonio Tabucchi nasceu em Pisa em 1943 e foi criado pelos avós maternos em Vecchiano, uma aldeia próxima. Estudou na Universidade de Pisa, e numa das suas viagens pela Europa descobriu, em Paris, a obra de Fernando Pessoa. A partir daí, Tabucchi tornou-se um apaixonado por Portugal e pela personalidade e obra de Fernando Pessoa. Em 1969 terminou o doutoramento em estudos portugueses com uma tese sobre o Surrealismo em Portugal. Em 1973 foi convidado a leccionar Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Bolonha, e em 1978 na Universidade de Génova. Mulher de Porto Pim foi escrito neste período, e publicado pela primeira vez em 1983. No ano seguinte, foi publicado o seu primeiro romance, Nocturno Indiano, transposto para o cinema por Alain Corneau. Nos anos seguintes escreveu Pequenos Equívocos sem Importância, O Fio do Horizonte (com filme de Fernando Lopes) e Os Voláteis do Beato Angélico.
Em 1990, Tabucchi foi condecorado pelo Presidente da República Ramalho Eanes com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e foi também nomeado Chevalier des Arts et des Lettres pelo governo francês.
Requiem, romance escrito em português como tributo a Fernando Pessoa, foi publicado em 1992 e recebeu o prémio do PEN Club italiano. Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa saiu em 1994, tal como Afirma Pereira, que mereceu o Premio Jean Monnet da Literatura Europeia e o filme de Roberto Faenza, com Marcello Mastroianni e Joaquim de Almeida.
Em 1997 foi publicado o romance A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro e em 2001 Está a Fazer-se Cada Vez Mais Tarde, um romance epistolar que recebeu em 2002 o prémio France Culture de literatura estrangeira.
Antonio Tabucchi faleceu em 2012 e está sepultado no Talhão de Artistas do Cemitério dos Prazeres. em Lisboa.
Lisboa
Lisboa está hoje deserta, por causa de uma pandemia que está a tirar-nos todas as alegrias. Vamos encontrando outras.
Quando voltarmos a viver Lisboa e todos os prazeres que hoje ela nos nega, iremos ao Cais do Sodré, ao Chiado, ao Bairro Alto, à Estrela, a Campo de Ourique e a Alcântara. Faremos um passeio por todos os lugares deste livro. Voltaremos à animação das lojas bonitas, das livrarias, dos cafés e dos bares. Voltaremos aos jardins.
O Cemitério dos Prazeres, onde Antonio Tabucchi se encontra sepultado, juntamente com muitos dos nossos mortos ilustres e não ilustres, fica em Campo de Ourique. Foi criado para responder à necessidade de enterrar muitos mortos, durante uma epidemia de cólera.
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