Ler por aí… em Lisboa, à noite

Ler por aí… em Lisboa, à noite

“O anjo sobrevoou a cidade às 12:00-12:27 (hora solar). Era louro e de asas vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins de igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus e das praias que contornavam a cidade, percorrendo-os com a sua sombra.
Foi escrito: a aparição teve lugar ao sétimo dia de um mês sobre todos radioso e na linha do zénite, sol a prumo. Exacta e inolvidável, exactíssima, pôs em alvoroço as multidões de banhistas que formigavam no areal (aquela era a estação do sol e da festa do corpo) e suspendeu o trânsito nas avenidas da beira-mar, vogando, vogando sempre.”

 

“(…) era sabido que Opus Night, com a sua elegância de bom corte, cravo ao peito e voz sonante, tinha duas memórias distintas, uma para a noite, outra para o dia (…)”
“(…) tinha um irmão juiz, beato, salazarista, solteiro, vegetariano e, finalmente, membro da Opus Dei. Daí chamarem-lhe a ele Opus Night, Sebastião Manuel, o Opus Night.
Ou Copus Night, também podia ser;
ou Octopus Night;
ou Antropus Night.”

O espaço de Alexandra Alpha reparte-se entre bares e camas. O tempo, entre noites e madrugadas. 

A cama de Alexandra Alpha tem “as três coisas melhores que há no mundo (…) o whisky antes e o cigarro depois.” É nessa cama que Beto convive com a nudez de Alexandra, a maninha. Édipo a voar sobre eles, “kill the father, fuck the mother”, dizia no póster de Beto, anos mais tarde.

Em frente à cama há um espelho, e nesse espelho estamos, ora dentro, ora fora de campo. Dois lados do espelho, duas realidades, Alexandra de dia e Alexandra de noite juntam-se naquela cama.

Duas realidades que Opus Night separa. A realidade do dia, antes do álcool, não tem a nitidez que tem a realidade após o pôr do sol, após os primeiros copus. Para ele, o tempo gira ao contrário.

Ao longo da obra encontramos referências a detalhes que reconhecemos no Bar Procópio, no Pavilhão Chinês, no British Bar ou no Botequim da Graça. O Bar Crocodilo é a síntese destes lugares.

 

Margarida Branco
© Ler por aí… (2012)

José Cardoso Pires

Foto de Elena Torre retirada do blog Duas ou Três Coisas  http://duas-ou-tres.blogspot.pt/2010/10/jose-cardoso-pires.html

José Cardoso Pires nasceu em Vila de Rei em 1925. Foi aluno de Rómulo de Carvalho no Liceu Camões. Estudou matemática. Foi jornalista e marinheiro. O resultado é uma escrita rica, enriquecida com todas as vivências.

O Delfim (1968) é considerado a sua obra prima, e foi transformado em filme em 2001 por Fernando Lopes. A Balada da Praia dos Cães (1982) também tem filme, de José Fonseca e Costa, realizado em 1987. Alexandra Alpha foi publicado pela primeira vez em 1987, celebrando este ano 25 anos. Lisboa, Livro de Bordo completa 15 anos.

Escreveu também contos, teatro, ensaios e crónicas. Mereceu diversos prémios, incluindo o Prémio Pessoa em 1997, um ano antes da sua morte. No mesmo ano é publicado De Profundis Valsa Lenta, de cariz autobiográfico. O Lavagante é publicado postumamente em 2008.

Vamos recordar José Cardoso Pires na próxima quinta-feira.

 

 

 

À noite em Lisboa

Foto retirada do blog Só Imagens http://thirthyfour.blogspot.pt/2010/11/lisboa-noite.html

Quando se põe o sol em Lisboa, ainda Sebastião Opus Night está a sacudir a poeira dos sonhos e a saborear o travo do seu primeiro cigarro. É nesta altura que as alminhas noctívagas se preparam para desbravar esta Lisboa tão densa e misteriosa que só vai com quem quer… (Rude para alguns, deslumbrante para outros, que isto de ser cidade-mulher não é para qualquer um.)

Opus Night é o icon duma Lisboa vadia e tardia, devassa e sensual mas que também é um porto de abrigo, o seu lar. As suas ruas sinuosas, avenidas largas “à francesa”, pracetas e quintais, becos e vielas, ruinhas, travessas, jardins, largos e alamedas… envolvem-nos num abraço quente.

É nesta Lisboa que perdura no tempo, com os seus pombos e velhos de jardim intactos, marinheiros e prostitutas, que Cardoso Pires se deixa levar pelo sabor da imaginação, navegando pelo ambiente da cidade com mestria e savoir-faire, ou não fosse ele seu amante assumido.

Em Alexandra Alpha vislumbramos um pouco da Lisboa de José Cardoso Pires, por entre a fumarada do Bar Crocodilo, uma cidade que se sente à flor da pele, tão viva de dia como de noite, matéria-prima de histórias, encontros e paixões.

Entre um travo de whisky e dois dedos de conversa, percebemos facilmente que por mais que o autor se queira deixar levar pela imaginação, voando para bem alto ou fugindo para bem longe, Lisboa lá está, à espreita, ao encerrar de cada capítulo, ao ecoar de cada palavra… intermitente e errante…implícita. Imponente. Afirmando-se em todo o seu esplendor.

Tânia Carvalho da Silva
© Ler por aí… (2012)

 

 

 

 

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