Ler por aí… em Hamburgo, Alemanha: História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar, de Luís Sepúlveda

Ler por aí… em Hamburgo, Alemanha: História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar, de Luís Sepúlveda

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 – Banco de arenques a bombordo! – anunciou a gaivota de vigia, e o bando do Farol da Areia Vermelha recebeu a notícia com grasnidos de alívio.
Iam com seis horas de voo sem interrupções e, embora as gaivotas-piloto as tivessem conduzido por correntes de ar cálido que lhes haviam tornado agradável aquele planar sobre o oceano, sentiam a necessidade de recobrar forças, e para isso não havia nada melhor do que um bom fartote de arenques.”

História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar

Gaivotas em terra, dizem, tempestade no mar. No caso da gaivota Kengah, tratou-se de uma tempestade negra: foi uma maré negra de petróleo que a forçou a ir para terra e quase a matou. Uma maré negra no Mar do Norte, junto à foz do rio Elba, na Alemanha, ponto de encontro de rotas migratórias das gaivotas.

 

Migrações

Estive a investigar. Kengah poderá bem ser uma gaivota de asa escura, que no final do Verão migra de Norte para Sul, e passa o Inverno em países como Portugal. Será talvez uma das nossas gaivotas – que vemos na Praça do Comércio ou nas Berlengas… ou como aquela que nos roubou o croissant na Boca do Inferno.

Estive a investigar. As gaivotas em terra são cada vez menos devidas a tempestades no mar. Elas estão a aprender que é mais fácil roubar comida do que caçá-la. O lixo comestível que displicentemente abandonamos nas ruas das grandes cidades, ou que cresce nas lixeiras a céu aberto, é uma tentação para as gaivotas, que começam a ser consideradas uma praga em alguns locais.

Estive a investigar. Encontrei este estudo interessantíssimo na revista Behavioural Ecology, da Universidade de Oxford, financiado pela Agência Espacial Europeia: “Migration strategy of a flight generalist, the Lesser Black-backed Gull Larus fuscus.” A rota das gaivotas de asa escura coincide com a do Bando do Farol da Areia Vermelha, descrita logo no início do livro. No final de Agosto, bandos de gaivotas voam desde as praias e escarpas do Mar do Norte e do Báltico, passam pela foz do rio Elba e juntam-se a outras vindas do Norte de França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, e Norte da Alemanha e da Polónia, para depois seguirem para Oeste, em direcção ao canal da Mancha:

No plano de vôo estava previsto que seguiriam depois até ao estreito de Calais e ao canal da Mancha, onde seriam recebidas pelos bandos da baía do Sena e de Saint-Malo, com os quais voariam juntas até chegarem aos céus da Biscaia.

Seriam então umas mil gaivotas que, como uma rápida nuvem cor de prata, iriam aumentando com a incorporação dos bandos de Belle-Île e de Oléron, dos cabos de Machicaco, do Ajo e de Peñas.

Quando todas as gaivotas autorizadas pela lei do mar e dos ventos voassem sobre a Biscaia, poderia começar a grande convenção das gaivotas dos mares Báltico, do Norte e Atlântico.”

Luís Sepúlveda também esteve a investigar.

 

No porto de Hamburgo

Zorbas vive em Hamburgo, e esta é a cidade onde nasce Ditosa, pinto de gaivota do ovo posto na sua varanda por Kengah. Como bom gato do porto, vai cumprir o prometido a Kengah, que é ensinar a juvenil a voar. Estamos portanto nas imediações do porto de Hamburgo, o terceiro maior porto da Europa.

Durante toda a história desta gaivota, deste que Zorbas conhece Kengah, esta morre, Ditosa nasce e finalmente aprende a voar, durante toda a história, Zorbas faz-se valer da ajuda dos seus amigos gatos, Sabetudo, Colonello, Secretário e Barlavento, e fazem do Bazar do Harry seu quartel general. Mas Harry não aparece na história, apenas Matias, o seu chimpanzé e porteiro. Apenas no fim, quando reconheceram que sozinhos não iriam conseguir pôr aquela gaivota a voar, é que pediram ajuda a um humano, “o humano”, um poeta. É do cimo da torre da igreja de São Miguel que Ditosa se lança a voar:

Do campanário de São Miguel via-se toda a cidade. A chuva envolvia a torre da televisão e, no porto, as gruas pareciam animais em repouso.

A gaivota estendeu as asas. Os projectores banharam-na de luz e a chuva salpicava-lhe as penas de pérolas. O humano e o gato viram-na erguer a cabeça de olhos fechados.

Ditosa voava solitária na noite de Hamburgo. Afastava-se batendo as asas energicamente até se elevar sobre as gruas do porto, sobre os mastros dos barcos, e depois regressava planando, rodando uma e outra vez em torno do campanário da igreja.”

 

 

Luís Sepúlveda

Luís Sepúlveda, foto retirada do website do CEI - Centro de Estudos Ibéricos, em http://www.cei.pt/pel/2016-luis-sepulveda.html
Luís Sepúlveda, foto retirada do website do CEI – Centro de Estudos Ibéricos, em http://www.cei.pt/pel/2016-luis-sepulveda.html

Luís Sepúlveda nasceu em 1949 em Ovalle, a Norte de Santiago do Chile. Estudou teatro e trabalhou nos assuntos culturais da administração de Salvador Allende. Com o golpe de Augusto Pinochet, foi preso, acabando por se exilar no Brasil, entre outros países, e depois no Equador, onde participou numa missão da UNESCO junto dos índios Shuar. Viveu 14 anos em Hamburgo, onde colaborou com a Greenpeace. História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar (1996), Patagonia Express (2004) e O Velho que Lia Romances de Amor (1989) são os seus livros mais conhecidos. Este último foi adaptado ao cinema por Rolf de Heer em 2001. Entre outros prémios, recebeu o Prémio Eduardo Lourenço, atribuido pelo Centro de Estudos Ibéricos.

Luís Sepúlveda faleceu em Abril de 2020, vítima de Covid-19. Foi homenageado este ano pelas Correntes de Escritas, que encerraram com a leitura colectiva, pela equipa, da História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar.

 

 

Hamburgo

O porto de Hamburgo e a barra de São Paulo, foto de Batintherain retirada da Wikipedia, em https://en.wikipedia.org/wiki/Port_of_Hamburg
O porto de Hamburgo e a barra de São Paulo, foto de Batintherain retirada da Wikipedia, em https://en.wikipedia.org/wiki/Port_of_Hamburg

O porto de Hamburgo aproveita o estuário do rio Elba, e Hamburgo acaba por se situar a mais de 100 quilómetros do litoral. É uma cidade dominantemente portuária, de água, canais e pontes.

Segundo Rafaela e Rafael, da Viagem Hamburgo, tem a maior concentração de milionários da Alemanha, e tornou-se um importante centro de comércio no século XII quando Frederico Barbarosa concedeu à cidade o direito de navegabilidade e livre comércio, e a libertou dos impostos imperiais.

O hamburger é o bife de Hamburgo. Comia-se no navio que levava emigrantes de Hamburgo para a América, e logo começou a ser servido no porto de Nova Iorque: um pedaço de carne picada no pão. Dizem que era a comida de nostalgia dos emigrantes, imigrantes agora que tinham chegado a terras americanas. No século XVIII aparece num livro de receitas inglês a Hamburger Sausage, um enchido feito de carne picada bem temperada, com vinho e rum inclusive, e servido no pão. Mas muito lá atrás, os romanos comiam a Isicia Omentata, um prato em que a carne picada era temperada com pinhões e garum, a tal conserva de peixe produzida no Algarve. Terá certamente sido entretanto adoptada pelos bárbaros. Não sabemos.

 

Margarida Branco
© Ler por aí… (2021)

 

 

Outras edições do livro:

Em castelhano (língua original), edição Tusquets
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Em inglês, edição Alma Books
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Em italiano, edição Salani
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