Ler por aí… em Istambul, Turquia

Ler por aí… em Istambul, Turquia

“Na penumbra tépida e doce, coberta pelo edredão aos quadrados azuis, com as suas cristas, as suas ravinas sombrias e as suas colinas de um azul delicado, que se estendia até à extremidade da cama, Ruya dormia ainda, deitada sobre o ventre. Lá fora, erguiam-se os primeiros ruídos de uma manhã de Inverno: raros automóveis, alguns autocarros, o barulho dos bidões de cobre com que o vendedor de salep, combinado com o vendedor de bolinhos de carne, enchia estrepitosamente o passeio, e os silvos do apito do guarda encarregado de assegurar o bom funcionamento dos taxis colectivos. No interior do quarto, a luz de Inverno  de um cinzento de chumbo tornava-se ainda mais pálida ao atravessar as cortinas de um azul marinho. Galip, que ainda não tinha emergido do sono, olhou de relance a mulher, cuja cabeça irrompia do edredão azul. O queixo de Ruya afundava-se na almofada de penas. A maneira como debruçava a cabeça tinha qualquer coisa de irreal, que despertava em Galip curiosidade por todas as coisas maravilhosas que nesse mesmo instante se produziam no cérebro dela, e medo também. “A memória é um jardim”, escrevera Djélâl numa das suas crónicas. “Os jardins de Ruya, os jardins dela…”, dissera então Galip para consigo. “Não penses nisso, acima de tudo, não penses nisso, o teu ciúme seria de mais!” Mas Galip foi nisso que pensou, enquanto contemplava a fronte da mulher.”

Este é um livro sobre Istambul. Istambul, antiga Bizancio e antiga Constantinopla, metade na Europa, metade na Ásia. Compreende-se que seja difícil a um turco definir-se.

Toda a obra gira em torno da problemática da identidade dos turcos, e num plano individual, da identidade de Galip. A época a que a história se reporta situa-se no final dos anos setenta. Sentimos que Istambul está parada (como a imagem de um filme), na expectativa de que algo tem que acontecer. Na verdade, em 1980 dá-se um golpe militar, na sequência do qual a Turquia parece optar pelo Ocidente e pela Europa.

Os Jardins da Memória são os de Galip? De Ruya? De Djelal? Ou os de Istambul e da Turquia? Ficamos a saber que todas elas estão ameaçadas. Djelal perde a memória; as memórias de Ruya são um eterno mistério. Galip revê as suas a cada passo que dá na cidade. E os turcos perdem a sua memória como povo, pois querem ser europeus. Os gestos, o vestuário, os hábitos já não são deles, mas sim copiados dos europeus. Os filmes que se fazem na Turquia e que os turcos vêem imitam aqueles que vêm de Hollywood.

Para acompanhar Galip na sua busca desesperada através da cidade, teremos que a atravessar, passando da Europa para a Ásia e da Ásia de novo para a Europa. Galip vivia em Nisantasi, que na época era um bairro de classe média decadente, e que hoje é conhecido como a Chelsea de Istambul. O escritório onde trabalhava era perto da milenar Torre da Gálata e da ponte com o mesmo nome (também milenar). Esta ponte faz a ligação entre as duas margens do Corno de Ouro, e faz a ligação, carregada de simbolismo, entre a cidade antiga e a cidade moderna.

Em inglês, o título deste livro é The Dark Book, o livro negro. Ao lê-lo, Istambul surge-nos como uma cidade parda, sem cor e suja. Este tom contrasta com as imagens que vamos recebendo das mil e uma histórias que se cruzam com o plano principal, histórias muito antigas, herdadas da cultura Sufi, e que funcionam como um espelho da história principal e são passíveis de numerosas interpretações. Djelal publicava-as todos os domingos no Milliyet, semanário que é realmente publicado na Turquia.

A minha sugestão é que leia Os Jardins da Memória a bordo de um barco que atravessa o Bósforo. Tente imaginar o que há lá no fundo.

 

Orhan Pamuk

Foto retirada do site da SVT, a televisão sueca de serviço público www.svt.se

Orhan Pamuk nasceu em Istambul, em 1952, e viveu a infância e juventude a pensar que iria tornar-se artista plástico. Estudou numa escola americana em Istambul, frequentou o curso de arquitectura e graduou-se em jornalismo. Nessa altura, resolveu dedicar-se à escrita. Publicou o primeiro romance, Cevdet Bey and His Sons (não traduzido em português) em 1982. Em 1985 publicou A Cidadela Branca, que deu a Pamuk projecção a nível internacional. Entre 1985 e 1988 viveu em Nova Iorque, onde escreveu Os Jardins da Memória. De regresso a Istambul, nasceu a sua filha Ruya (como a personagem do livro) e publicou A Vida Nova (1994). A sua obra mereceu já diversos prémios, tanto na Turquia como em diversos países pelo mundo fora (está traduzido em 40 idiomas). Destaca-se o Nobel da Literatura de 2006.

 

Istambul

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Foto retirada do site da Northfield Mount Hermon School (NMH) https://www.nmhschool.org

Istambul é hoje uma cidade cosmopolita, mas soube preservar o seu encanto oriental – as mesquitas e os palácios dos sultões são o grande atractivo turístico. Beyoglou, desaguando na Praça Taksim, é um bairro de contrastes – as avenidas de luxo para as compras, as embaixadas, os hotéis, e também a prostituição e o ópio. Nas margens do Bósforo, estreito que separa a Europa da Ásia, erguem-se fortalezas, palácios e villas de sonho, bem como alguns restaurantes.

 

Margarida Branco
© Ler por aí… (2007)

 

 

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