Ler por aí… na Islândia: A Raposa Azul, de Sjón
As raposas azuis são tão curiosamente semelhantes a pedras que isso é motivo de maravilhamento. No Inverno, quando se deitam ao seu lado não existe qualquer possibilidade das distinguir das rochas: na verdade, são muito mais astutas do que as raposas brancas, que lançam sempre uma sombra ou parecem amareladas contra a neve.
Uma raposa azul deita-se muito perto de uma pedra, e deixa que a neve que sopra de barlavento se acumule sobre ela. Vira as costas à intempérie, enrola-se e enfia o focinho debaixo da coxa, baixa as pálpebras até restar apenas o mais ténue dos vestígios de uma pupila. E assim mantém um olho atento sobre o homem que não se moveu desde que se abrigou sob um banco de neve saliente, ali nas vertentes superiores do Asheimar, há cerca de dezoito horas. A neve caiu sobre ele, até o homem se assemelhar apenas aos restos de um muro arruinado.
O animal tem de tentar não se esquecer que o homem é um caçador.”
Tenho esta imagem da Islândia: um território extremamente vulcânico, em constante erupção e mutação, em que territórios que hoje existem amanhã podem já lá não estar, e vice versa. Por isso, fico a pensar se alguns dos locais referidos pelo autor existiriam no século XIX e hoje já não existem, ou se foram simplesmente inventados por ele. Isto porque, embora sejam referidos muitos topónimos ao longo do livro, consegui localizar muito poucos: a aldeia de Brekka, onde moram os personagens, fica situada no topo de um fiorde na parte nordeste da ilha. Podemos supor que esta caçada tenha tido lugar em torno desta região.
Estabelece-se entre a raposa e o caçador um jogo, quase uma dança, quase um perigoso flirt, de dissimulações, provocações e esperas. A narração da caçada é, para mim, o grande espectáculo desta escrita.
Não! O homem estende-se ao comprido no chão: o que é que vislumbrou ali? Fora um rochedo?
Pega no binóculo mas não consegue ver nada. Neblina na lente. Limpa-a com a manga. O quê? Poderá ser aquilo que pensa ser? Desaparece, não, volta a aparecer:
Uma cabeça de raposa! Sim, a mais ténue das sombras de uma cabeça. Era a azul. Claro, ele deve estar ali de vigia já há algum tempo. Fecha o óculo.
A raposa solta um guincho de enregelar o sangue.”
Esta história começa no seu segundo dia: o primeiro capítulo começa no dia 9 de Janeiro de 1883, e o segundo capítulo recua para o dia 8, para nos dar conta dos acontecimentos que nos levaram àquele momento inicial. A certa altura, a maio do primeiro capítulo, o parágrafo inicial volta a aparecer-nos, palavra por palavra.
A Islândia da época, final do século 19, era uma região sob o domínio do reino da Dinamarca. Era um dos territórios mais pobres da Europa, e foi-o até ao fim da Segunda Guerra Mundial. Aliada à pobreza, temos com frequência a ignorância, e nesta história também. Os demónios do gelo e da religião têm aqui uma presença muito forte. Apenas a compaixão do naturalista da aldeia consegue trazer alguma humanidade a esta história.
Sjón
Sjón é um escritor, poeta, guionista, dramaturgo e letrista islandês. Nasceu em 1962 em Reykjavík e é uma relevante figura do meio cultural islandês, conhecido, entre outras coisas, pela sua colaboração com Björk, para quem escreveu as letras de várias canções.
O seu livro mais conhecido é A Raposa Azul, publicado em 2003. Venceu o Nordic Council Literature Prize em 2005, com este livro. Infelizmente é o único livro do autor publicado em Portugal, mas Sjón tem outros títulos, alguns bem sugestivos (à atenção das editoras): Red Milk, The Whispering Muse, From the Mouth of the Whale, Codex 1962 e Moonstone: The Boy Who Never.
Sjón participa no projeto Future Library: foi o terceiro autor a entregar um manuscrito que só verá a luz em 2114.
A Islândia
A Islândia é o 7º país com menor densidade populacional. Reykjavík é a capital europeia mais a Norte. A sua formação é recente, em termos geológicos, e pode-se dizer que ainda está a ocorrer: a Deformação Geológica da Islândia é um fenómeno real.
A arrebatadora pujança da natureza confere uma beleza dramática à ilha, dominada por glaciares e vulcões, gelo e lava. Percorrer um glaciar por dentro deve ser uma experiência incomparável. Tal como tomar um banho quente rodeado de neve.
Dizem que os primeiros habitantes da Islândia terão sido os Papar, padres eremitas irlandeses – no século IX; quando os primeiros Vikings se instalaram, os Papar já lá estavam. É o que contam as sagas. Para sabermos tudo sobre os primeiros habitantes da Islândia, nada como visitar o Museu da Saga.
Além das sagas, os Vikings legaram aos islandeses as casas de turfa, a cerveja e algo próximo da igualdade de género. Também as raças de animais de criação doméstica na Islândia são hoje em dia muito idênticas às trazidas pelos Vikings, uma vez que, devido ao isolamento, não foram sujeitas aos sucessivos cruzamentos e apuramentos genéticos que sofreram as suas congéneres do continente. É por isso que um dos pratos mais tradicionais é o borrego fumado no seu próprio estrume: outro dos legados dos Vikings foi a desflorestação, pelo que os islandeses não tinham madeira para queimar. Também o skyr foi uma herança Viking, que curiosamente desapareceu dos restantes países escandinavos (antes de se tornar moda nos anos recentes).
Margarida Branco
© Ler por aí… (2023)
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