Ler por aí… em Goa, na Índia
“- De que pensas tu que é feita a memória? – perguntou o meu pai.
Vendo-lhe a húmida ternura no olhar baixo e a mão a tremer no meu ombro, percebi que a minha mãe lhe estava a acariciar os pensamentos. Já fora enterrada há mais de dois anos, e fazer ele esta pergunta tão adulta a um rapaz de sete anos dava bem a dimensão da dor que continuava a sentir.
– Não sei, papá – respondi encolhendo os ombros, já que era demasiado novo para achar que me valia a pena arriscar uma conjectura. Mas, quando ele retirou a mão, o medo adejou as asas aos meus ouvidos. – Talvez seja feita de tudo o que já vi – apressei-me a acrescentar (…)”
Acompanhamos a família Zarco desde O Último Cabalista de Lisboa – Tiago é bisneto de Berequias. Três gerações mais tarde, a família que saiu de Lisboa para Constantinopla, partiu para Goa.
A família de Tiago Zarco vivia entre plantações de bananas e campos de arroz, junto ao rio Zuari, perto da aldeia de Ramnath, inserida numa comunidade maioritariamente hindu do sultanato muçulmano de Bijapur. Os Zarco eram judeus.
No século XVI, Goa – a Velha Goa, como lhe chamamos hoje em dia – estava dominada pelos portugueses e pela Inquisição. Dos muros das igrejas monumentais e da prisão do Santo Ofício desciam sombras pesadas sobre Tiago Zarco, como calafrios de febre nas ruas em terra batida da cidade de Goa. Foi o santo São Francisco Xavier quem pediu a D. João III uma Inquisição para Goa, que viria a tornar-se a mais produtiva do império.
O Santo Ofício, onde Tiago esteve preso, ocupava o Palácio do Sabaio, anterior residência de vice-reis, e ante-anterior palácio do sultão de Bijapur, Adil Shah. Hoje apenas resta desta magnífica construção a ruína do arco de Adil Shah, perto do Arco dos Vice-Reis. O palácio ocuparia o terreno a leste deste arco, e no terreiro à sua frente realizavam-se, em nome de deus, que é um só, os auto-da-fé como o que Tiago Zarco presenciou.
Nos piores momentos. Tiago Zarco apelou às memórias felizes da sua infância entre os arrozais e as bananeiras junto ao rio. As memórias felizes da aurora guardaram Tiago Zarco na noite.
Richard Zimler
Richard Zimler nasceu em Nova Iorque em 1956. Licenciou-se em Religião Comparada pela Universidade de Duke e fez o Mestrado de Comunicação da Universidade de Stanford.
Embora já tivesse escrito diversos contos e merecido em 1994 o prestigiado prémio Fellowship in Fiction da U.S. National Endowment for the Arts, O Último Cabalista de Lisboa (1996) é o seu primeiro romance. Como Goa ou o Guardião da Aurora (2005), faz parte do “Ciclo Sefardita” e foi traduzido em mais de dez idiomas, tendo sido best seller em dez países.
Outros romances do autor: Unholy Ghosts (1996, não traduzido para português), Trevas de Luz (1998), Meia Noite ou O Princípio do Mundo (2003), À Procura de Sana (2006), A Sétima Porta (2007) e Os Anagramas de Varsóvia (2009) – Livro do Ano 2009 da revista LER – e Ilha Teresa (2011), o seu mais recente romance. O seu livro de contos Confundir a Cidade com o Mar (2008) deu origem a uma curta-metragem de Solveig Nordlung, O Espelho Lento (2009), em que o próprio Richard é um dos actores. Recentemente, tem explorado o território da infância, em parceria com o ilustrador Bernardo Carvalho, com Dança Quando Chegares ao Fim (2009) e Hugo e Eu e as Mangas de Marte (2011).
Para além de escritor, é também professor de Comunicação na Universidade do Porto e tradutor de autores de língua portuguesa, como Al Berto, António Botto, Ilse Losa, Nuno Júdice, Pedro Tamen, e Pepetela.
Richard Zimler vive no Porto desde 1990.
Goa
Goa foi uma colónia portuguesa até há menos de meio século. Ainda se sente Portugal em cada rua, nas casas coloridas da Velha Goa, nas igrejas monumentais. Os resultados do cruzamento multicultural de cinco séculos encontram-se na arquitectura, mas também na música, na linguagem, na gastronomia e na religião.
Goa é hoje em dia um exótico destino de praia – para além dos habituais coqueiros à beira mar, as plantações de especiarias e frutos tropicais compõem um cenário de côres de sari que apela a todos os sentidos.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2012)
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