Ler por aí… na Escócia e na Lisboa do Terramoto: Lillias Fraser, de Hélia Correia

Ler por aí… na Escócia e na Lisboa do Terramoto: Lillias Fraser, de Hélia Correia

Lillias salvou-se da carnificina porque, seis horas antes da batalha, viu o pai morto, como realmente ele haveria de morrer mais tarde. Atravessado por baionetas, de modo que os buracos na barriga vertiam sangue, bílis, e excrementos. Tom Fraser estava em pé, tapando a entrada, espalhando como sempre a escuridão. Ela pensou que aquilo que tanto o feria era o surpreendê-la adormecida na cama de madeira, que se usava somente em três momentos de uma vida: parir ou ser parido, acasalar pela primeira vez e falecer. O pai mostrava o seu desgosto abrindo o corpo, falando pelas fezes arruivadas. Lillias queria esconder-se, mas sabia que um pecado de filha nunca mais desapareceria da visão de um pai. Arremeteu-lhe contra as pernas e passou pelo meio delas, tão pequena e azulada que isso lhe dava qualidades de animal. A sua camisinha esvoaçava como penugem ao sabor da ventania, enquanto ela corria e se afastava cada vez mais, sem se dar conta de que, em verdade, ainda nada sucedera.”

Esta história começa em 1746, no Norte da Escócia, com a batalha de Culloden, em que escoceses jacobitas foram derrotados pelas forças inglesas do Duque de Cumberland, conhecido na Escócia como “the butcher”, o carniceiro.

Lillias é uma menina de seis anos que consegue escapar ao massacre que se seguiu à batalha. Órfã de pai e de mãe, acaba na casa de Lady Mackintosh, o Moy Hall. É aqui que Lady Mackintosh lhe ordena que não fale, para que o seu nome e o seu sotaque escocês não a traiam. Nos anos seguintes à batalha, os escoceses que restaram emigraram para o Novo Mundo, e os que ficaram viram a sua forma de viver e a sua cultura subjugadas pelo ocupante inglês. Os tartan kilts foram proibidos e são ainda hoje símbolo de resistência.

Lillias permanece muda, durante anos, e continua sem falar quando a levam, de barco, para Lisboa, desembarcando em Setúbal e atravessando a Arrábida.

Lisboa acolheu Lillias com suspeição, numa época em que a Inquisição dominava e os ingleses, sendo prostestantes, apenas eram tolerados porque tinham dinheiro e traziam negócio. A família que acolheu Lillias acabou por entregá-la no Convento das Inglesinhas, ou de Santa Brígida, onde é actualmente o ISEG, no Quelhas.

Lillias tem os olhos dourados das bruxas, e causa em quem a conhece um medo irracional. Na verdade, o poder sobrenatural de Lillias – ver a morte  – é totalmente inofensivo. No entanto, salva. Salvou-a em Culloden, e salvou-a em Lisboa, nove anos depois, levando-a novamente a fugir, desta vez de um terramoto.

É nesta fuga que encontra Cilícia, a mulher corpulenta com quem acaba por chegar a Mafra, onde se abrigam no Convento. Ao regressar a Lisboa, a casa de Cilícia está arruinada. Passam pelo Terreiro do Paço e pelo bairro de São Paulo, que fora regado com cal viva por ordem do Marquês de Pombal, em direcção à Pampulha, o bairro que ficava – e fica – a oeste das Janelas Verdes. É aqui que finalmente encontram alojamento. É aqui que Lillias se apaixona por Jayme Mendões.

É Jayme Mendões que a exibe pela cidade, do Rossio à Cotovia (a de cima, onde é agora o jardim do Príncipe Real, ou a de baixo, onde é agora a Praça da Alegria). Jayme Mendões, que se mete em apuros no Loreto e que desaprecia as tabernas lisboetas por lhes faltar a discussão de idéias que já se fazia nas cidades do Norte da Europa (nos recém-inventados cafés).

O encontro de Lillias Fraser com Blimunda Sete-Sóis, personagem de Saramago, dá-se já no fim do livro. Lillias Fraser encontra Leonor de Almeida no Convento das Inglesinhas, numa obra de Maria Teresa Horta. Lillias Fraser é a personagem por que Hélia Correia se apaixonou.

 

Hélia Correia

Hélia Correia - imagem retirada do website da Companhia das Ilhas, em https://companhiadasilhasloja.files.wordpress.com/2014/08/helia-correia.jpg
Hélia Correia – imagem retirada do website da Companhia das Ilhas, em https://companhiadasilhasloja.files.wordpress.com/2014/08/helia-correia.jpg

Hélia Correia, de costela escocesa, nasceu em 1949 em Lisboa e cresceu em Mafra. Formada em Filologia Românica, e pós-graduada em Teatro da Antiguidade Clássica, foi professora e tradutora.

Escreveu teatro e poesia, e sobretudo ficção. Lillias Fraser (2001) mereceu o Prémio de Ficção do Pen Club em 2001. Montedemo (1983) foi adaptado aos palcos pela companhia de teatro O Bando em 1987.

Hélia Correia foi Prémio Camões em 2015.

 

Escócia

Moy Hall - desenho do alçado Sul pelo arquitecto Alexander Ross (1872) - imagem retirada do website do Canmore, em https://canmore.org.uk/site/14102/moy-hall?display=image
Moy Hall – desenho do alçado Sul pelo arquitecto Alexander Ross (1872) – imagem retirada do website do Canmore, em https://canmore.org.uk/site/14102/moy-hall?display=image

A construção inicial do Moy Hall foi pilhada, incendiada e totalmente destruída nos dias que se seguiram à batalha de Culloden. Resta uma pedra com o escudo dos Mackintosh, e num terreno próximo foi construído, no século XIX, um novo palácio, que também foi destruído durante a II Guerra Mundial. Moy Hall é hoje uma confortável casa de campo escocesa, e mantém-se propriedade do clã Mackintosh.

Moy Hall fica situado a Sul de Inverness, a capital administrativa das Highlands Escocesas, e a Leste do célebre Loch Ness.

A paisagem das Highlands é de montanhas, lagos e natureza deslumbrante, quase sempre sob a tal scotish mist que dá nome a um cocktail – à base de whisky, naturalmente. As Highlands prolongam-se para Norte e Oeste por mais de 900 pequenas ilhas. Uma delas é Iona, contada por Helena Marques.

 

 

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Lisboa

Igreja de São Paulo após o Terramoto de 1755, por Jacques Pilippe Le Bas - imagem retirada da Wikipedia, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Ruinas_da_Igreja_de_S._Paulo_após_o_Terramoto_de_1755_-_Jacques_Philippe_Le_Bas,_1757.png#filelinks
Igreja de São Paulo após o Terramoto de 1755, por Jacques Pilippe Le Bas – imagem retirada da Wikipedia, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Ruinas_da_Igreja_de_S._Paulo_após_o_Terramoto_de_1755_-_Jacques_Philippe_Le_Bas,_1757.png#filelinks

Lisboa ia-se erguendo devagar, tão devagar que vinte anos depois ainda muito relato de viajante dizia haver entulho em toda a parte.”

Lisboa permaneceu em escombros durante quase um século após o terramoto de 1755. O Terreiro do Paço, a Ópera do Tejo recém-inaugurada, o Convento do Carmo (este ainda está em ruína), O Hospital de Todos os Santos e o Palácio dos Estaus (ao Rossio), o Arquivo da Torre do Tombo (no Castelo), a própria Sé Catedral, são alguns dos edifícios que sofreram danos significativos.

 

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Margarida Branco
© Ler por aí… (2020)

 

 

 

 

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