Ler por aí… em Dublin, Irlanda

Ler por aí… em Dublin, Irlanda

“Desta vez estava desenganado; era o terceiro ataque. Todas as noites, ao passar por casa dele (era em tempo de férias) eu me punha a observar o rectângulo luminoso da janela e todos os dias reparava em como aquela luz era mortiça e sempre igual. Se ele tivesse já morrido – pensava eu – havia de se ver na cortina obscurecida o reflexo das velas. Por essa altura, já eu sabia que era costume colocar duas velas à cabeceira dos mortos. Muitas vezes ele me disssera: “Já não duro muito”, mas supunha que dizia aquilo por dizer. Agora sei que tinha razão. Todas as noites, quando olhava para a janela, murmurava mansamente para comigo próprio a palavra paralisia, que soava então aos meus ouvidos como um termo singular, tal como me acontecia, na geometria euclidiana, com a palavra gnomon e no catecismo com a palavra simonia. Mas agora, soava dentro de mim como se fosse o nome de um ser maligno e tresandando a pecado. Enchia-me de terror e, contudo, ansiava por me aproximar dela e por contemplar o seu mortal poder de destruição.”

Sendo um livro de contos, em Gente de Dublin não há um lugar chave, uma vez que em cada conto existe esse lugar. Em alguns, não é sequer especificado o lugar exacto em que a história se movimenta. Ler por aí… Gente de Dublin justifica-se, no entanto, pela apreciação dos tipos que Joyce caracterizou, e do próprio ambiente que se vivia na cidade no final do século XIX.

Na Dublin do final do século XIX respirava-se política e religião – sendo difícil distinguir uma da outra. A Irlanda era (e é) um país católico e fazia parte do Reino Unido, que era (e é) protestante. O resultado mais interessante desta contrariedade irlandesa foi a renascença céltica, em que os irlandeses procuraram nas suas origens celtas os aspectos culturais que os distinguiam dos ingleses, principlamente na literatura e na música. Em Dubliners há referências a este movimento cultural, nomeadamente em “O Dia da Hera na Sala da Comissão” e em “O Morto”.

A Sala da Comissão ficava em Wicklow Street, muito perto do Trinity College. A maior parte dos contos da colectânia passam-se, de resto, nesta redondeza. “Um Encontro” é uma das excepções, em que os dois rapazes fazem gazeta à escola para ir à procura de aventuras para Ringsend, na zona portuária. Em “Um Caso Doloroso”, James Duffy mora da zona de Chapelizod, que era na época um subúrbio de Dublin, em direcção a Oeste.

Existe uma casa em Dublin, a Casa de “O Morto”, na Usher Street 15, perto do rio, que inspirou este último conto, que Joyce escreveu já depois de ter tentado, sem êxito, publicar o livro. Toda a cena do jantar e baile que inicia a história de “O Morto” foi inspirada nas lembranças da infância das ceias de Natal e dos jantares e bailes organizados, por duas tias de Joyce, nesta casa. A sala de jantar é a mesma onde o pai Joyce cerimonialmente trinchava o ganso e fazia o seu discurso no fim do jantar. Os actuais donos da Casa de “O Morto” organizam jantares semelhantes, sendo este considerado um dos lugares literários mais importantes do mundo.

Seria este um bom sítio para se instalar a ler o seu Gente de Dublin, mas a casa está aberta apenas para os jantares e bailes, e este tipo de actividade não é compatível com a leitura.

Poderá encontrar um local aprazível junto ao rio, embora o tempo em Dublin nem sempre permita leituras ao ar livre. A alternativa é dirigir-se a Temple Bar, onde não faltam cafés e bares agradáveis. Escolha um e aí poderá sentar-se e ler descansadamente. É certo que não se trata da mesma atmosfera que se vivia há um século atrás – os pubs de então serviam cerveja e ale em quantidade, enquanto que hoje Temple Bar é o sofisticado centro da vida cultural e boémia da cidade. Aqui a dificuldade é concentrar-se na leitura, pois a todo o momento poderá muito bem vislubrar a figura de algum irlandês famoso (aquele não é Bono dos U2?).

O Centro James Joyce tem uma cafetaria e uma biblioteca, onde poderá ainda encontrar muita informação sobre James Joyce. E também organiza passeios a pé pelos locais Joyceanos de Dublin.

 

Joyce

Foto retirada do blog Second Time (url indisponível)

James Joyce nasceu em 1882 em Rathgar, um subúrbio de Dublin. Passou toda a infância e juventude nesta cidade, o que lhe proporcionou a matéria prima essencial da sua obra. Muitas das personagens joyceanas baseiam-se em familiares e amigos seus desta época.

Em 1904 muda-se para Trieste, em Itália, na época fazendo parte do Império Austro-Húngaro. Aí conhece Italo Svevo, e ambos se tornam críticos mútuos. É nesta época que publica Gente de Dublin. Em 1915, no seguimento da Grande Guerra, é forçado a exilar-se em Zurique.

Permanece em Zurique até que, finda a Guerra, é convidado por Ezra Pound a passar uma semana em Paris, onde acaba por permanecer os vinte anos seguintes, sendo nesta época a publicação da sua principal obra, Ulisses. Em 1940, receando a ocupação nazi, deixa Paris e regressa a Zurique, onde vem a morrer em 1941.

 

Dublin

Foto retirada do site Dublin Tourist http://www.dublintourist.com

Em Dublin, capital da Irlanda, fica situada na foz do rio Liffey, na costa Leste do país. Embora tenha passado por um período de decadência e abandono, na década de 60 iniciou um percurso de recuperação que tornou a cidade de Dublin numa das mais encantadoras e sofisticadas da Europa. 

A actividade cultural é muito interessante em Dublin, não nos deixando esquecer que aqui nasceram James Joyce, William Butler Yeats e Samuel Beckett, entre outros. Em Temple Bar, a animação de rua é quase constante.

 

Margarida Branco
© Ler por aí… (2006)

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.