Ler por aí… em Castelo Rodrigo: A Aldeia das Almas Desaparecidas (parte I – A Floresta do Avesso), de Richard Zimler

Ler por aí… em Castelo Rodrigo: A Aldeia das Almas Desaparecidas (parte I – A Floresta do Avesso), de Richard Zimler

Quando tinha três dias de idade, a magia veio ter comigo na ponta dos pés, tomou-me nas suas mãos grandes e calosas e murmurou-me ao ouvido orações orvalhadas com odor a coentros. Eram sussurros em castelhano na sua maioria, mas condimentados com frases de som gutural numa língua que, quando tinha cinco anos, me foi revelada como sendo a falada por Jesus e os seus apóstolos.

Quando fecho os olhos – agora, vinte e um anos mais tarde -, a intimidade daquelas palavras provoca-me arrepios. E apercebo-me de que uma parte de mim continua a ouvir as vozes quentes e amortecidas da minha infância, mesmo quando só há silêncio à minha volta.”

Estamos na aldeia de Castelo Rodrigo, próximo da fronteira com Espanha e a Sul do rio Douro. Esta é a paisagem da aldeia mais bela do mundo, segundo o nosso protagonista, Isaac Zarco. Reconhecemos este sobrenome de outros livros de Richard Zimler, em primeiro lugar do primeiro deste Ciclo Sefardita, O Último Cabalista de Lisboa. Isaac dista de Berequias 150 anos e várias gerações – e quase 400 quilómetros! O século XVII vai avançado, os Filipes espanhóis já se foram embora, mas reina a Inquisição.

Castelo Rodrigo é então o cenário desta história de cristãos-novos, ameaçados pelo Santo Ofício, que espalhou a sua teia por todo o território, desde as grandes cidades até às mais ínfimas e remotas aldeias, impondo uma verdade alucinada que Isaac não compreende e a que chama “floresta do avesso.” 

Com a ajuda da Avó Flor, e do seu amigo Samuel, Isaac vai desvendando os mistérios da súbita animosidade dos vizinhos:

 – Porque é que os padres não pregam do lado do Senhor? – quis eu saber.

 – Porque vivem dentro de uma ilusão. Eu imagino-a como uma floresta densa. O sol nunca lhes chega. Estão numa escuridão permanente, pelo que os amigos se transfiguram em inimigos. E a lealdade em traição. O que é desencorajante é que se habituam de tal maneira a isso, que se sentem gratos por poderem continuar onde estão.

 – Essa floresta onde eles vivem vira as coisas do avesso? – perguntei.

 – Não, ela própria é que está do avesso!”

Para escrever este livro, Richard Zimler visitou Castelo Rodrigo: as suas ruas, portas e muralhas, bem como o castelo, a igreja e as ruínas do palácio do Marquês, são fielmente inseridas na narrativa. Até se refere, mais do que uma vez, o Jogo do Alguergue, de que resta um tabuleiro de pedra. Procure-o, perto da Torre do Relógio.

Gosto sempre de sublinhar as referências gastronómicas e neste livro há muitas, dando vida ao quotidiano das famílias cristãs-novas. Seriam alimentos que se usavam (alguns ainda se usam) na região, talvez com um subtil toque da tradição dos cristãos-novos: pão quente molhado em azeite e salpicado de tomilho fresco, sopa de castanhas, frango coberto de ameixas secas e limão, com batatas, cenouras e nabiças, bacalhau com uma cobertura de broas migadas, bacalhau com ovo cozido, cebola e azeite

Quando a Avó Flor e Samuel sentem que a vida de Isaac corre perigo, enviam-no para o Porto. É na cidade do Porto que se desenrola a segunda metade deste primeiro volume do romance. Também aqui se conseguem reconhecer no texto os traços de uma antiga judiaria – a Judiaria do Olival – que ainda é possível trilhar – a subir ou a descer os Degraus da Sinagoga.

Além do reconhecimento geográfico (digamos), percebemos que para escrever este livro, Richard Zimler realizou uma pesquisa rigorosa nos arquivos da Inquisição. Os testemunhos ali deixados há quatro séculos transparecem no dia-a-dia destas personagens.

Do lançamento deste livro, em Novembro passado, recordo a homenagem do escritor a duas das vítimas do Santo Ofício, que estes arquivos eternizaram: António Espírito Santo, preso em 1770 com apenas 14 anos, e Maria Gomes, presa em 1636, com 115 anos de idade.

Richard Zimler

Richard Zimler nasceu em Nova Iorque em 1956. Vive em Portugal desde 1990.

O Último Cabalista de Lisboa é o seu primeiro romance. Seguiram-se Trevas de Luz, Meia-Noite ou o Princípio do Mundo, Goa ou o Guardião da Aurora, À Procura de Sana, A Sétima Porta, Confundir a Cidade com o Mar (contos), A Voz do Amor – 72 Haiku Cabalísticos, Os Anagramas de Varsóvia, Ilha Teresa, A Sentinela, O Evangelho Segundo Lázaro, Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco, Os Insubmissos e este A Aldeia das Almas Desaparecidas. Escreveu também livros infantis: Dança Quando Chegares ao Fim, Hugo e Eu e as Mangas de Marte, Se Eu Fosse, O Cão que Comia a Chuva, Maria e Danilo e o Mágico Perdido, Na Terra dos Animais Falantes e o recente A Cegonha Sem Vergonha. Os seus livros estão publicados em 23 idiomas e receberam diversos prémios e distinções.

Em 2009, Zimler escreveu o guião para o filme de Solveig Nordlund, O Espelho Lento, uma curta-metragem baseada num dos seus contos. O filme venceu o prémio de melhor filme dramático no Festival de Curtas-Metragens de Nova Iorque em Maio de 2010.

Richard Zimler recebeu em 2017 a Medalha de Honra da Cidade do Porto.

Castelo Rodrigo

ruas castelo rodrigo
Imagem das ruas de Castelo Rodrigo obtida no dall-e

Situada na região de Riba-Côa, a aldeia de Castelo Rodrigo desenvolve-se em torno do castelo defensivo, construído  no cimo de um monte e tem uma vista de 360º sobre o rio Douro, a Serra da Marofa e terras espanholas. As ruas estreitas, com as casas medievais dentro de muros, transportam-nos de imediato para épocas distantes. Castelo Rodrigo foi castigada por D. João I por ter-se posicionado do lado errado da crise de sucessão de 1383-85 (lembram-se da escola?) – o rei atribuiu-lhe um brasão com as armas viradas de pernas para o ar! Já na crise de sucessão de 1580, Castelo Rodrigo esteve do lado certo: Em 1640, o Marquês de Castelo Rodrigo, representante do rei espanhol durante a dinastia filipina, teve o seu palácio incendiado pelo povo de Castelo Rodrigo. Em 1664, na Guerra da Independência, a Batalha de Castelo Rodrigo conduz irreversivelmente à Restauração da Independência. 

A relevância histórica desta aldeia compete com o seu encanto. 

Margarida Branco
© Ler por aí… (2023)

Richard Zimler no Passagens (sobre este livro):

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