Ler por aí… em Trinidad y Tobago, nas Caraíbas

Ler por aí… em Trinidad y Tobago, nas Caraíbas
Uma Casa para Mr. Biswas, de V. S. Naipaul,a Ler por aí... em Trinidad y Tobago, nas Caraíbas

Dez semanas antes de morrer, Mr. Biswas, jornalista da Sikkim Street, St. James, Port-of-Spain, foi despedido. Já há algum tempo que estava doente. Em menos de um ano passara mais de nove semanas no Hospital Colonial e convalescera em casa durante mais tempo ainda. Quando o médico lhe aconselhou repouso completo, o Trinidad Sentinel não teve outra hipótese. Notificou Mr. Biswas do despedimento com três meses de antecedência  e continuou, até à sua morte, a enviar-lhe todas as manhãs um exemplar grátis do jornal. 

 

Mr. Biswas tinha quarenta e seis anos e quatro filhos. Dinheiro, não tinha. A mulher, Shama, também não. Quanto à casa de Sikkim Street, Mr. Biswas devia, há já quatro anos, três mil dólares. O juro sobre a dívida, de oito por cento, dava vinte dólares por mês; a renda paga ao proprietário do terreno era de dez dólares. Dois dos filhos andavam na escola. Os outros dois não o podiam ajudar: encontravam-se no estrangeiro, com bolsas de estudo.

 

…”

Não há risco de revelação indevida do fim da história: é assim que o livro começa.

Uma Casa para Mr. Biswas – ou Pícaro nas Caraíbas

Mas vamos aos factos, antes de mais nada. Uma casa para Mr. Biswas – A House for Mr. Biswas, no original – foi um dos primeiros livros escritos por V. S. Naipaul e foi o que lhe trouxe notoriedade, apesar de dois dos anteriores (The Mystic Masseur e Miguel Street) já terem ganho prémios. O livro é bastante autobiográfico – a personagem de Mr. Biswas inspira-se no pai de Naipaul. É uma declaração de amor, escrita com a mistura de ironia e ternura, distância e empatia que caracteriza Naipaul e lhe valeu o Booker Prize, o Nobel e uma série de outros prémios. 

Mr. Biswas começa a sua vida numa família pobre de trabalhadores indianos da cana de açúcar, na ilha de Trinidad. Nasce com seis dedos, ao contrário e à meia-noite, o que leva a família a acreditar que está votado ao fracasso e a um carácter «devasso e esbanjador», no dizer do pândita que a família chamou no dia seguinte ao nascimento. O mínimo que se pode dizer é que Mr. Biswas não começou bem, mas ter sobrevivido a tanto prenúncio de desgraça já é, por si só, uma façanha. 

Façanhas essas que vão continuando. Mr. Biswas vai crescendo, fazendo pequenos trabalhos, progredindo na vida mas cada degrau que sobe é pago caro. Por causa dele o pai morre afogado, arranja um emprego de pintor de tabuletas, casa-se involuntariamente com a filha de um dos clientes e a família desta faz-lhe a vida negra. Mas consegue finalmente o que sempre procurou: uma casa sua. Não é propriamente um palácio:

A casa podia ser vista a uma distância de dois ou três quarteirões e era conhecida em toda a St. James. Era como uma imensa e disforme guarita: alta, quadrada, com dois andares e um telhado de chapa ondulada, em forma de pirâmide. Tinha sido projectada e construída por um escriturário de um solicitador que se dedicava à construção civil nas horas vagas. Esse escriturário tinha muitos conhecimentos…

 

No piso térreo da casa de Mr. Biswas, o escriturário do solicitador tinha posto uma cozinha minúscula a um canto. … Entre a cozinha e a sala de jantar havia uma abertura para a porta, mas não havia porta. …

 

No seu projecto inicial o escriturário de solicitador parecia ter-se esquecido da necessidade de uma escada para ligar os dois pisos. Para remediar este problema construiu uma escadaria que tinha todo o aspecto de um acrescento de última hora. …” (acordismos ortográficos corrigidos).

Mas o verdadeiro triunfo de Mr. Biswas não foi exactamente a casa, apesar de lhe ter chegado por via dela:

Nestas circunstâncias, Mr. Biswas não deixou de sentir alguma satisfação ao verificar que Shama [a mulher] não tinha ido a correr para a mãe a pedir ajuda.

 

… Desde que se tinham mudado para a sua casa, Shama aprendera uma nova lealdade, lealdade em relação a ele e aos filhos; separada da mãe e das irmãs, Shama era capaz de exprimir essa lealdade sem vergonha e, para Mr. Biswas, esse era um triunfo quase tão notável como a compra da casa.”

 

V. S. Naipaul

V. S. Naipaul
V. S. Naipaul, imagem retirada do Expresso, em https://expresso.pt/cultura/2018-08-18-Em-memoria-de-Sir-Vidia-Naipaul

V. S. Naipaul inscreve-se naquela linhagem de escritores que inclui Marguerite Yourcenar e Gabriel Garcia Marquez: uma escrita factual, incisiva, sóbria e lapidar. Em Mr. Biswas coabitam o patético e o grandioso, o azar e a recompensa, a virtude e o risível da tenacidade. Como todos nós Mr. Biswas é por vezes simpático e outras tantas odioso. A ironia é uma das formas de expressão do amor e Uma Casa para Mr. Biswas prova-o palavra a palavra, linha a linha, página a página.  Amor filial e amor pela humanidade, pela vida como ela é e como a sonhamos, pelo esforço e pela resiliência, pelos dois impostores de que fala Kipling. 

 

Trinidad y Tobago

Lion House
A Lion House, em Chaguanas, foto retirada do site da Lion house, em http://www.thelionhouse.com/LIONHOUSE.html

A capital de Trinidad y Tobago, Port-of-Spain, na ilha de Trinidad, é uma cidade de mistura de raças e culturas, mas a casa de Mr. Biswas não era na capital. Ficava em Arwacas, cidade habitada sobretudo por imigrantes indianos, e inspirada na cidade de Chaguanas, a sul de Port-of-Spain, uma cidade dominada pela indústria do açúcar.

Em Chaguanas há uma casa, a Lion House, que pertence à família de Naipaul, e foi onde o escritor nasceu. Será esta a casa que inspirou a casa de Mr. Biswas, a casa Hanuman. Ao que parece, está a transformar-se numa ruína.

Trinidad y Tobago foi colónia espanhola e inglesa. A predominância de população de origem indiana resulta da “importação” de trabalhadores para trabalhar nas plantações e refinarias de açúcar, aquando da abolição da escravatura pelos colonizadores no século 19. Sobretudo em Chaguanas, a presença da cultura indiana é muito visível, não só na arquitectura – de que é prova a Lion House – mas também na religião, na gastronomia, na música.

 

Luís Serpa
© Ler por aí… (2020)

 

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