Ler por aí… em Santiago, Cabo Verde: O Novíssimo Testamento, de Mário Lúcio Sousa
É chegada a minha hora, balbuciou a velha, que se encontrava havia mais de três meses no seu leito, diga-se mais morta do que viva, com forças apenas para aquelas palavras, como se as tivesse poupado para, desse modo, dar por anunciado o fim da mulher mais beata que o mundo alguma vez conhecera, estranha pronúncia foi aquela, a penúltima, uma cabala de uma morte evidente, porque a última da morte ninguém sabe, mas todos sabiam que era sem dúvida o adeus esperado da mais abnegada pessoa que a igreja e a sociedade alguma vez baptizaram naquelas ilhas abandonadas (…)”
A história desta velha passa-se em Cabo Verde – na época da colonização portuguesa – mais concretamente, na ilha de Santiago – numa vila chamada Lém, que fica no interior da ilha, a cerca de 12 kms da Praia, portanto na parte Sul da ilha.
É esta vila que, na história, se torna o novo centro do cristianismo:
(…) a história da humanidade havia de percorrer três tempos desde a Criação até ao Fim do Mundo, cada Era vivida sob a influência de uma das três pessoas da Trindade, e, portanto, se a Era da lei mosaica fora específica da idade do Pai e a da leia evangélica da do Filho, a da lei do Evangelho Eterno haveria de ser a da idade do Espírito Santo e, do mesmo modo, se a sede da Igreja do Pai fora Jerusalém, a do Filho, Roma, testemunhado estava que a nova sede da Igreja do Espírito Santo acabara de cair sobre uma nova Terra Santa, a vila do Lém, na ilha de Santiago do Arquipélago de Todos os Santos (…)”
Este livro conta então a história de uma mulher que re-encarna Jesus – enquanto mulher – uma mulher condicionada pela religião, mas que no fundo, lá bem no fundo, sente as pulsões como todos nós. E ao re-encarnar em Jesus, acaba por se libertar.
São muito curiosas as epígrafes que abrem algumas das partes deste livro: são citações do Evangelho de São João. A certa altura, perto do final, há uma explicação: João foi, dos 4 evangelistas, o único que nada tem em comum com os restantes. Marcos, Mateus e Lucas escreveram os chamados Evangelhos Sinópticos, em que é retratada uma visão mais humanizada de Jesus, enquanto que João retrata Jesus como um ser divino.
Esta escrita não tem pontos finais – só vírgulas – é uma narração torrencial, sem pausas, nem mesmo entre os capítulos – os capítulos terminam com vírgula. Até o último!
Sorri durante toda a leitura deste livro, e muitas vezes desatei a rir: como se pode prever, dado o tema, a escrita é carregado de ironia!
Mário Lúcio Sousa
Nascido no Tarrafal, Ilha de Santiago, Cabo Verde, em 1964, Mário Lúcio é músico e escritor, mas também pensador do fenómeno da crioulização. Fundador da banda Simentera, prossegue a sua carreira a solo. Foi Ministro da Cultura e das Artes de Cabo Verde entre 2011 e 2016.
Tem publicados livros de poesia (Nascimento de Um Mundo, Sob os Signos da Luz, Para Nunca Mais Falarmos de Amor), ficção (Os Trinta Dias do Homem mais Pobre do Mundo, Vidas Paralelas, O Novíssimo Testamento, Biografia da Língua, O Diabo Foi Meu Padeiro e o recente A Última Lua de Homem Grande), teatro (Saloon e a coletânea Teatro) e ensaio (Manifesto à Crioulização).
Ilha de Santiago, Cabo Verde
A ilha de Santiago é uma das 10 ilhas do arquipélago, e uma das 4 do Sotavento – que são as ilhas mais a Sul do arquipélago.
A ilha de Santiago é a ilha da capital, Praia, que fica na extremidade Sul – o Tarrafal fica na extremidade Norte, e estes dois pontos distam cerca de 85 kms, o que dá uma ideia aproximada da extensão da ilha.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2022)
Deixe um comentário