Ler por aí… na raia beirã

Cansado de estar de cócoras em frente do bicho. A moleza do corpo não lhe permitia tal posição.
O sol viera adormecer os nervos, trazendo quebranto e desleixo aos músculos, como se um afago morno tivesse furado a cortina das nuvens para lhe vestir a carne friorenta com uma indolência entorpecente. Por isso os gestos do Pencas se espreguiçavam; por isso os seus membros eram vermes deliciados e o cérebro se esvaziava numa cálida zona de volúpia, todo ele sem forças para se interessar pela tortura da cobra. Esta, resignada ali na sua frente, fazia-lhe apetecer os dias rubros de soalheira, as vinhas, os baldios, os lagartos torrando-se no cimo das fragas, vida quente e livre, sem aquelas necessidades miseráveis de comida, botas, tabaco e vinho.”
Estamos perto da fronteira, naquela aresta a que sempre achei graça quando, na escola, desenhava o mapa de Portugal. A Sul temos o Tejo, a leste o Erges. A Oeste e a Norte, as serras da Gardunha e da Estrela, no centro Monsanto, a aldeia mais portuguesa, dizem. Fernando Namora viveu aqui.
Três lugares marcam a história: a aldeia, o pomar e a serra. A aldeia, ponto de encontro de contrabandistas e vagabundos, a aldeia e as tabernas. Por ter uma Rua da Sarça, desconfiamos que é Monsanto, ficcionado e renomeado Montalvo. O Pomar, entregue pelo velho Visconde a camponeses que o desbravaram e o fizeram pomar, e defendido a tiros de espingarda pelo velho Parra da cobiça do Visconde novo e outros grandes. A serra, por onde eram passadas para Espanha cargas de minério, aos cinquenta quilos às costas de cada homem. Para passar a fronteira, era preciso atravessar o rio Erges, com água pelo peito, e correntes fortíssimas… alguns ficavam lá…
Uma análise psicológica do romance iria mostrar que todo ele é feito de momentos de grande tensão, em que os personagens vivem no limite da resistência, à fome, ao cansaço, e em que a permanente luta pela sobrevivência é irracional. Por vezes, durante a leitura, senti também aquela tontura, a cabeça a não ser capaz de pensar, só de agir para matar a fome e satisfazer as mais básicas necessidades do ser humano.
É nalguns desses momentos que a Calhica, a única mulher da história, tem um papel reconfortante. Ela faz café, ela trata um pé desmanchado.
Ao longo da narrativa, Namora faz referência a outros lugares que reconhecemos. O Rosmaninhal, Penha Garcia, Segura, e em Espanha, Vilares del Fresno e La Zarza, ambas aldeias na região de Cáceres, por ali é a Serra da Gata.
Alguns lugares não existem na realidade, pelo menos com os nomes reais. Confesso que não percebi o que era o Maranhão, o estado livre do Maranhão (decerto não seria o brasileiro!) Embora admita que o Montalvo seja Monsanto, pois certamente não será o que fica junto a Constância, não fiquei com a certeza absoluta. E o barrocal, com certeza não é no Algarve! As minas de Pelares del Porto, não as consegui localizar. Por isso, confesso de novo, a primeira leitura que fiz irritou-me. Tive que ler o livro uma segunda vez para apreciar a sua força.
Se fosse Verão, sugeria que se recostasse sobre uma rocha no alto do (já pouco) templário castelo de Monsanto, de onde pode ter uma panorâmica sobre toda a região, enquanto, como o lagarto, torrava ao sol. Como é Inverno, proponho antes um sítio aconchegado, como o sofá da sala de estar da estalagem, onde também pode jogar uma bisca.
Fernando Namora

Fernando Namora nasceu em 1919 em Condeixa-a-Nova, lugar onde hoje podemos visitar a sua Casa-Museu.
Estudou medicina em Coimbra, e estabeleceu-se como médico em Monsanto, entre outros lugares da Beira Baixa e Alto Alentejo. É a experiência de médico de aldeia que lhe dá o conhecimento humano que trata nos seus romances desta época, em que se incluem A Noite e a Madrugada (1950) e Retalhos da Vida de um Médico (1946), adaptado ao cinema por Jorge Brum do Canto (1962), e de que se fez também uma série de televisão em 1979.
Em 1950, Fernando Namora vai para Lisboa, onde o seu trabalho no Instituto Português de Oncologia lhe permite tomar contacto com uma nova dimensão da realidade humana, e também esta experiência é fonte de inspiração. São baseados nela os romances O Homem Disfarçado (1957) e Domingo à Tarde (1961), adaptado a cinema em 1966 por António de Macedo.
Fernando Namora foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa dos Escritores Médicos, criada em 1969. Entre outros reconhecimentos, em 1981 foi nomeado para o Prémio Nobel da Literatura e recebeu em 1988 a Grã Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique. Faleceu em Lisboa em 1989.
Monsanto, a raia beirã e o Tejo Internacional

Em Monsanto, as casas são de granito, com algumas paredes formadas por penedos, os telhados chegam-se uns aos outros para formar um labirinto de ruas estreitas, que sobem e descem ao sabor do relevo onde os seus antepassados se instalaram. Lá no alto, o castelo avista tudo em redor. O consultório e a casa onde residiu Fernando Namora estão assinaladas com placas, mas não se podem visitar. Fernando Namora referiu-se a Monsanto como “nave de pedra”.
O rio Erges faz parte do Parque Natural do Tejo Internacional, criado em 2000, por iniciativa da Quercus e da espanhola Adenex junto dos respectivos governos. Corresponde aos vales dos rios Erges e Pônsul e do segmento de Tejo entre estes dois afluentes, formando um U verde. O Erges e o Tejo materializam a fronteira com Espanha naquela região, e eram atravessados de noite por contrabandistas. A Rota do Contrabando procura reviver este circuito, através de programas pedestres e de BTT. Os rios são também cenário de actividades de canoagem.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2008)
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