Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem, de Maryse Condé: Ler por aí… em Barbados, nas Caraíbas

Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem, de Maryse Condé: Ler por aí… em Barbados, nas Caraíbas

Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem, de Maryse Condé: Ler por aí… em Barbados, nas Caraíbas, e em Salem, no Massachussets.

O primeiro contacto que tive com este livro foi no podcast Chá das Cinco com Literatura. Num episódio de 2022 da série Sabá das Cinco – em que se fala de bruxaria na literatura – o livro é mencionado juntamente com vários outros que tratam o tema dos julgamentos das Bruxas de Salem.

Abena, a minha mãe, foi violada por um marinheiro inglês na ponte do Christ the King, num dia de 16**, enquanto o navio se dirigia para Barbados. Foi dessa agressão que nasci. Desse acto de ódio e desprezo.

Quando, longas semanas mais tarde, chegámos ao porto de Bridgetown, ninguém se apercebeu do estado da minha mãe. Como provavelmente não tinha mais do que dezasseis anos, como era bonita com a sua tez de um negro de azeviche e com o desenho subtil das cicatrizes tribais nas subidas maçãs do rosto, um rico plantador com o nome de Darnell Davis comprou-a por um preço muito alto.”

São duas as localizações desta história: a ilha de Barbados, nas Caraíbas, e Salem, no estado do Massachussets. Na verdade, são dois locais com o mesmo nome, Salem: a cidade de Salem e a aldeia de Salem, a cerca de 5kms, que é actualmente Danvers. Estamos no século XVII e ambos os locais são colónias britânicas.

Tituba, filha de uma mulher axante escravizada numa plantação da ilha de Barbados, é desde cedo um ser marginal. Quando a mãe morre, Tituba tem sete anos e é expulsa da plantação. Acolhe-a uma velha nago, Man Yaya, que a inicia na cura pelas plantas e nas artes da magia. No mapa dos afectos de Tituba, esta mulher tem um lugar central. Como John Índio, por quem Tituba acaba por renunciar à liberdade que tinha.

A parte inicial do livro mostra-nos a ilha de Barbados no século XVII: uma ilha ocupada por plantações de cana de açúcar, com uma próspera cidade portuária, Bridgetown:

Da última vez que estivera em Bridgetown, a minha mãe estava viva. Em cerca de dez anos, a cidade desenvolvera-se consideravelmente e tornara-se um importante porto. Uma floresta de mastros obscurecia a baía, e vi flutuarem bandeiras de todas as nacionalidades. As casas de madeira pareceram-me graciosas com as suas varandas e os seus enormes telhados, e nelas as janelas abriam-se de par em par como uns olhos de criança.”

Carlisle Bay era local de festa, junto ao porto:

– Domingo à tarde, há dança em Carlisle Bay. Queres ir lá ter? Vou lá estar.
(…)
Não foi difícil encontrar o local da dança, pois a música ouvia-se ao longe. Tivesse eu alguma noção do tempo e teria sabido que era a época do Carnaval, o único momento do ano em que os escravos tinham liberdade para se distraírem como bem lhes apetecesse. Então, acorriam de todos os cantos da ilha, para tentarem esquecer que já não eram humanos.”

Com John Índio, Tituba irá acompanhar o seu senhor, Samuel Parris, e a família quando estes partem para Boston. Samuel Parris é uma figura histórica, real. Como Tituba. Um ano depois, mudam-se para a aldeia de Salem, onde Parris será pastor puritano. Não será aqui, mas sim na cidade de Salem, ambas na Nova Inglaterra puritana, que irá dar-se o infame julgamento das Bruxas de Salem. O fenómeno é hoje descrito como uma espécie de “histeria colectiva” em que mais de 200 pessoas foram acusadas de bruxaria e cerca de 30 consideradas culpadas. Deste julgamento resultaram 20 execuções e cinco mortes na prisão. Tituba foi uma das vítimas deste processo – embora não mortal. Como vaticinara Man Yaya:

– Hás-de sofrer durante a tua vida. Muito. Muito.
(…)
– Mas vais sobreviver.”

O que se segue é o processo histórico deste julgamento. Tituba acaba presa em Ipswich. Dois anos depois, é comprada por um judeu português. Finalmente é libertada e regressa a Barbados. Este final é ficcionado. Como será talvez ficcionada a benevolência de Tituba para com a espécie humana, para com os brancos esclavagistas e para com os homens em geral.

Este livro é dos tais – dos tais que nos levam a pesquisas sem fim, dos tais que eu gosto. Ainda assim, não deixo de tomar nota do seguinte: O livro foi escrito na voz de uma pessoa do século XVII. Discute, claramente, questões raciais, de género, além de religiosas e políticas. Mas será que na época existiam as palavras racista e feminista?

É um livro que, embora pretenda denunciar uma injustiça decorrente de um julgamento por bruxaria, conserva uma grande dose de magia e de sobrenatural: Tituba conversa com a mãe e com Man Yaya, quando ambas já estavam mortas, por exemplo.

Abundam as palavras caribenhas de origem africana, e através delas temos acesso a um colorido que nos transporta facilmente para as vibrantes ilhas do Caribe – não para a imagética dos resorts e das praias paradisíacas das agências de turismo, mas para o imaginário da mesclagem de culturas que nos deram o Calypso e o Reggae, a Cumbia e a Bachata, o rum e os sabores crioulos.

Maryse Condé

Foto de Maryse Condé retirada do perfil @literaturanegrafeminina no Instagram

Maryse Condé nasceu em Guadalupe em 1937. Estudou Literaturas Comparadas na Nouvelle Sorbonne, em Paris, e ensinou no Gana, na Guiné (Conacri) e no Senegal. Depois de se doutorar, com investigação sobre os estereótipos negros na literatura caribenha, foi professora em várias universidades americanas.

Publicou o primeiro romance, Hérémakhonon (1976), já perto dos 40 anos. Segu é a obra que a tornou conhecida. Divide-se em duas partes, publicadas em 1984 e 1985. Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem saiu logo a seguir, em 1986. Em Portugal, está publicado pela Mardoror (2022). Outras obras de Maryse Condé publicadas em Portugal são À Espera da Subida das Águas, livro de 2010 publicado pela Quetzal em 2023, e O Evangelho do Novo Mundo, de 2021, que a Livros do Brasil publicou muito recentemente, já em 2024. Espera-se que venham a surgir mais obras de Maryse Condé no mercado português, nomeadamente o romance duplo Segu, que conta a história de um rei africano e da disrupção gerada pela chegada das religiões monoteístas ao seu território.

Além de romance, Maryse Condé escreve também teatro e crítica literária e dedica-se aos temas históricos ligados à herança africana e ao feminismo. Recebeu inúmeros prémios e é Comendadora da Ordem das Artes e das Letras de França.

Barbados

Foto de Bridgetown retirada do Viator

Barbados é uma ilha nas Antilhas, independente do Reino Unido desde 1966. É rodeada do turquesa do mar das Caraíbas e um destino de férias no paraíso. Mas é muito mais. A ilha oferece actividades no mar – por cima e por baixo das águas. Em terra, a cidade de Bridgetown é Património da Humanidade da UNESCO pela sua arquitectura colonial inglesa. Nas ruas, restaurantes servem comida caribenha, por exemplo callaloo com fungee – lembrando a herança africana da ilha, pois é muito parecido com o calulu e o funge de Angola. Os bares servem rum e derivados cocktails, e ouve-se música e dançam-se os ritmos quentes do Calypso, da Socca e do Jazz do Caribe.

No interior da ilha, muitas das antigas casas grandes das plantações são hoje pequenos hotéis de charme que constituem excelentes alternativas aos resorts de praia. É numa destas plantações, com séculos de história, que é feito o rum Mount Gay, que servíamos no Ler por aí… Café – quem se lembra? É possível visitar a destilaria e a plantação.

Uma curiosidade: foi em Barbados que nasceu a cantora Rihanna.

Salem, Massachussets

Foto da Witch House em Salem, Massachussets de massmat no Flickr

A Massachussets Bay Colony foi uma das mais antigas colónias inglesas na América do Norte, centrada em Boston e Salem. A Witch House é o único edifício da época dos julgamentos das Bruxas de Salem que ainda se encontra de pé na cidade de Salem.

Já na aldeia de Salem – que hoje se chama Danvers – encontramos a ruína do antigo presbistério habitado por Samuel Parris e o edifício onde funcionava a taberna Ingersoll’s Ordinary, frequentada por Samuel Parris, e onde se espoletou a “histeria colectiva” que orginou os julgamentos das Bruxas de Salem.

Em ambos os locais, estes julgamentos são a grande atracção. Tudo gira em torno deste imaginário. Visitar Salem e Danvers no Halloween é uma imersão no ambiente gótico da bruxaria.

Margarida Branco
© Ler por aí… (2024)

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