Ler por aí… em Alfama, Lisboa
“Uma mágoa contida recobria o aparo da pena com que escrevia quando iniciei a narração da nossa história. Estávamos no ano hebraico de 5267, 1507 da era cristã.
Egoisticamente, abandonei o manuscrito, por Deus não me ter recompensado com a tranquilidade da alma.
Hoje, passados que são vinte e três anos desta magra tentativa de registar a minha busca de vingança, voltei a afagar as páginas abertas do pergaminho. O que me terá levado a romper a jura de silêncio?”
O espaço da Judiaria Pequena, em Lisboa, em parte já não existe, devido à destruição provocada pelo terramoto de 1755. Mesmo assim, sendo Alfama um bairro de origem medieval, dos que menos sofreu com o terramoto, algumas das ruas referidas na obra são ainda identificáveis.
Berequias Zarco vivia na Rua de São Pedro (na Judiaria Pequena, em Alfama), numa casa que fazia esquina com a Rua da Sinagoga (que não identifiquei, talvez já não exista, ou terá mudado de nome…). No entanto, descobri que na Rua da Judiaria ficava a antiga Sinagoga. Seria a mesma rua?
O que surpreende nesta obra é que, embora imparável de acção, esta história não é ficção – trata-se de uma daquelas situações em que a realidade já é suficientemente alucinante… A história de Berequias está escrita, pelo próprio, num manuscrito encontrado numa velha cave em Constantinopla.
O Último Cabalista de Lisboa era o tio de Berequias, assassinado no dia em que se deu o massacre de milhares de judeus, junto à Igreja de São Domingos. A história desenvolve-se em torno da busca da verdade – quem assassinou Abraão Zarco? E, tão ou mais importante, existe mesmo um Deus que permita que tais horrores aconteçam?
Para Berequias, a morte do tio representa não só a perda de um familiar próximo e muito estimado, mas também o fim de uma fonte de sabedoria inestimável – a cabala, escola filosófica judaica, que na época constituía um importante veículo de instrução. Apercebemo-nos ao longo da leitura que a população judaica de Lisboa era mais instruída do que a população cristã, em que poucos saberiam ler.
Em busca da verdade, na qual se baseia a sabedoria da cabala, consubstanciada na figura do tio, Abraão Zarco, Berequias percorre a cidade de lés a lés, por ruas que hoje já não existem, como as ruas da Judiaria Grande, onde agora está a Baixa, e por outras que ainda conseguimos reconhecer. Vemos os Olivais e Marvila com as suas quintas, Belém e o seu grande Mosteiro em construção, o Bairro Alto e as suas casas nobres, passamos através de portas da cerca fernandina, vamos ao Rossio e ao Largo de São Domingos, ao Limoeiro e à Sé. Assistimos a cenas de terror descritas com uma sensibilidade extraordinária.
O Miradouro de Santa Luzia dá-nos a perspectiva necessária para compreender e abarcar o espaço, mas depois é necessário embrenhar-nos nas ruas e vielas, e com um pouco de imaginação podemos sentir o medo de andar por ali e ser apanhado. Experimentem também os degraus da Igreja de Santo Estêvão, ou então o Largo do Chafariz d’El Rei. Como no tempo de Berequias, ali ainda são todos vizinhos.
Richard Zimler
Richard Zimler nasceu em Nova Iorque em 1956. Licenciou-se em Religião Comparada pela Universidade de Duke e fez o Mestrado de Comunicação da Universidade de Stanford. Tendo trabalhado como jornalista durante oito anos na zona de São Francisco, mudou-se para o Porto em 1990.
Embora já tivesse escrito diversos contos e merecido em 1994 o prestigiado prémio Fellowship in Fiction da U.S. National Endowment for the Arts, O Último Cabalista de Lisboa (1996) é o seu primeiro romance. Faz parte do “Ciclo Sefardita” e foi traduzido em mais de dez idiomas, tendo sido best seller em dez países.
Seguiram-se Unholy Ghosts (1996, não traduzido para português), Trevas de Luz (1998), Meia Noite ou O Princípio do Mundo (2003), Goa ou O Guardião da Aurora (2005) e À Procura de Sana (2006).
Para além de romancista, é também professor de Comunicação na Universidade do Porto e tradutor de autores de língua portuguesa, como Al Berto, António Botto, Ilse Losa, Nuno Júdice, Pedro Tamen, e Pepetela.
Alfama
Alfama representa a Lisboa Medieval, que sobreviveu ao terramoto de 1755. Situado fora da cerca moura, ficou do lado de dentro da muralha fernandina. Estende-se desde o castelo até ao Tejo, voltada para o sol. As casas são antigas, algumas são pobres outras são ricas e mui nobres. Entre elas encontram-se limoeiros.
Em Alfama situava-se uma das várias judiarias de Lisboa. Situava-se junto à Igreja de São Pedro, e lá se encontrava a sinagoga. Ao que parece, terá sido construída sem autorização do rei, valendo à comunidade judaica uma multa de 50 libras de ouro.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2006)
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