Ler por aí… na Albânia: Os Tambores da Chuva, de Ismail Kadaré
No final do Inverno, quando os enviados do sultão se foram, compreendemos que a guerra era inevitável. Haviam recorrido a todas as formas de pressão para que aceitássemos converter-nos em gwaswales, ou vassalos, como dizem os latinos, do sultão. Após lisonjas e promessas de que nos fariam participar no governo do seu imenso império, veio a acusação de que não passávamos de renegados a soldo dos francos, ou seja, da Europa. Por fim, como seria de esperar, chegaram as ameaças. Tendes grande confiança nas muralhas das vossas cidadelas, disseram-nos, mas mesmo que elas sejam como as imaginais, cercar-vos-emos com outro anel de ferro, o da sede e da fome. Fá-lo-emos de tal maneira que, cada vez que regressar o tempo das colheitas e do debulhar nas eiras, julgareis ver no céu um campo semeado, e na Lua uma foice.
Depois partiram.”
Os tambores da chuva só se ouvem quando está para chover. Avisam o exército turco que é hora de retirar.
O cerco a esta cidadela albanesa começa em 18 de Junho e termina em 1 de Outubro, de um certo ano do século XV. O cerco turco durou todo o Verão, e era sabido que se não tomassem a cidadela durante o tempo seco, não iriam conseguir fazê-lo após as primeiras chuvas.
A cidadela é uma certa cidadela albanesa, cujo nome nunca nos é dito. Podemos imaginar que será a cidadela de Krujë, que resistiu ao cerco otomano sob o comando de Jorge Castriota Skanderberg, em 1450.
A história deste cerco é contada sob vários pontos de vista. Cada capítulo começa com um breve relato a partir do lado albanês, sitiado. O ponto de vista muda logo de seguida, e todas as páginas que se seguem no mesmo capítulo nos colocam do lado otomano, sitiante. Na maioria dos capítulos, acompanhamos Mevla Tchélebi, o cronista do paxá. Por vezes, o olhar que seguimos é o do próprio paxá, ou o das suas mulheres.
Na verdade, o relato que nos é contado a partir do lado sitiado é tão breve em cada capítulo que é difícil torcer por ele, e damos por nós a criar empatia com os otomanos sitiantes. Imagino que, colocando aqueles breves relatos no início de cada capítulo, terá sido intenção do autor recordar-nos a todo o tempo do sofrimento do sitiado.
O ambiente no acampamento é de grande tensão e sente-se muito o calor, a sede, o pó e o cansaço. Dentro da cidadela também. Entre ataques, cada parte ainda encontra forças para festejar as pequenas vitórias e preparar-se para o próximo embate. Do lado otomano, reconhecemos uma organização militar com uma clara hierarquia entre as várias divisões, que vão avançando sucessivamente. Mandar avançar os janízaros e os soldados da morte, forças de elite, era uma jogada de trunfo que só se usava quando era mesmo necessário.
A leitura de Os Tambores da Chuva é um mergulho na guerra medieval. Somos Sísifos a trepar aquelas muralhas. O pez e o azeite a ferver queimam-nos a pele. Tombamos de escadas de madeira cada vez mais altas. Fazemos cativos – é de crianças feitas cativas na sequência de guerras que se formam os janízaros, e Jorge Castriota Skanderberg terá sido um deles – e fazemos cativas – além das que irão integrar o harém do paxá, há um tráfego de cativas entre as tropas acampadas.
Ismail Kadaré
É considerada uma das maiores vozes da literatura europeia e mundial, já foi nomeado para o Nobel várias vezes, que nunca ganhou, mas ganhou outros – inaugurou o International Booker Prize por exemplo (quando ainda era atribuído à obra e não a uma obra).
Nasceu em Gjirokastër em 1936, numa família muçulmana. Estudou Línguas e Literaturas na Universidade de Tirana e em 1958 partiu para Moscovo para estudar no Instituto de Literatura de Máximo Gorki. Cedo se desencantou com o realismo socialista. Em 1960 regressou a Tirana, sob ordem de Enver Hoxha. Escreveu por alegorias, parábolas, metáforas, como forma de crítica dissimulada ao regime.
O seu primeiro sucesso internacional foi O General do Exército Morto (1963), que está publicado em Portugal pela Sextante. Além de Os Tambores da Chuva (1970), estão disponíveis em edição portuguesa O Nicho da Vergonha (1978) pela Sextante, Um Jantar a Mais (2008) e O Acidente (2010) pela Quetzal, e A Filha de Agamémnon (2003) pela Dom Quixote.
Vive em França desde 1990 (já após a morte de Enver Hoxha).
A Albânia
A Albânia fica situada nos Balcãs, região montanhosa entre os mares Adriático e Jónico, e que correspondia aos territórios europeus do império otomano. O cerco de Krujë, inspiração para Os Tambores da Chuva, não definiu o domínio otomano na Albânia – foram necessários mais 29 anos para, com o cerco de Shkodra, mais a Norte, os otomanos tomarem finalmente a Albânia. A cidade de Gjirokastër terá sido o primeiro centro administrativo do domínio otomano na Albânia, e é património da Unesco.
Mas a Albânia é conhecida sobretudo pela ditadura comunista de Enver Hoxha durante mais de quarenta anos, entre o fim da II Guerra Mundial e 1985, ano da morte do ditador. Não terá chegado a ver terminado o seu bunker megalómano, com 5 pisos sob o solo de Tirana, que hoje é um museu e centro de artes – o Bunk’art. O gabinete de Enver Hoxha está decorado como se o ditador o ocupasse, e se levantar o telefone pode ouvir a sua voz gravada.
A costa da Albânia proporciona quilómetros de praia mediterrânica – chamam-lhe a riviera albanesa. A comida albanesa é tipicamente mediterrânea. É interessante descobrir que a célebre moussaka (é grega, sim, mas é muito albanesa também) tem origem árabe e turca, mas o prato que hoje é servido, gratinado com béchamel, é uma re-interpretação afrancesada do chef do Hotel Hermes em Atenas, Nikolaos Tselementes, em 1920.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2021)
Quando este artigo foi publicado, a Albânia anunciou a composição do novo governo, dominado por mulheres.
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