Ler por aí… no Alasca: A Ilha de Sukkwan, de David Vann
Tive um Morris Mini com a tua mãe. Era um carro minúsculo, como um carrinho dos parques de diversões, e um dos limpa-pára-brisas estava estragado, de modo que eu andava sempre com o braço fora da janela para fazer funcionar as escovas. A tua mãe era doida por campos de mostarda nesse tempo, sempre a querer passar por lá nos dias de sol, nos arredores de Davis. Havia mais campos nesse tempo, menos pessoas. Acontecia a mesma coisa em todo o mundo.“
Quem se lembraria de aprofundar a relação com o seu filho adolescente levando-o para uma ilha deserta no Alasca, durante um ano?
Esta ideia peregrina não poderia correr bem, e desde o início do livro se pressente que não vai acabar bem. Mas nada nos prepara para quão mal, quão terrivelmente mal vai acabar.
Imaginemos o Alasca como um território inóspito, selvagem, muito, muito frio, e com paisagens magníficas. Conseguimos imaginar o estado de espírito de Roy, um adolescente, ávido de vida, ao ver-se obrigado a ir por um ano (um ano, na adolescência, é uma eternidade…) para uma ilha deserta no Alasca: sem escola, sem amigos, sem nada de estimulante que não as magníficas paisagens e a necessidade de sobreviver a um Inverno escuro, duro e longo:
Bem, como estava a dizer, tens o teu salmão e o teu primeiro urso e uma data de coisas que as outras pessoas nunca terão, mas é tudo o que tens, incluindo ninguém por perto.”
Imaginemos como terá sido, há cerca de 20.000 anos, os primeiros Inuits a atravessarem o Estreito de Bering e a estabelecerem-se ali. Vinham certamente adaptados de outros tantos milhares de anos no Kamchatka (quem se lembra de jogar ao Risco?), ao clima rigoroso e às condições de sobrevivência naqueles territórios. Mas Roy não. Nem Jim, o pai.
Imaginemos como terá sido a migração para Norte, dos antepassados dos Inuit, uma sobrevivência à custa da tentativa e erro perante cada novo desafio mais a Norte, mais escuro, mais inóspito. Lembro-me de uma impressionante fotografia de Sebastião Salgado, de um grupo de homens e mulheres a atravessar a neve, na Ásia. Que fotografia poderosa!
Roy e Jim enfrentaram estas provas de sobrevivência, em direcção ao Inverno, mas eram só os dois, e não tinham herdado uma adaptação evolutiva como os antepassados Inuit.
A Ilha de Sukkwan fica na parte Sul do Alasca, a uma latitude idêntica a, por exemplo, Copenhaga. Apenas por curiosidade, em Into the Wild (O Lado Servagem, de John Krakauer) Christopher McCandless esteve e morreu no Stampede Trail, um trilho na parte central do Alasca, cerca de 10 graus mais a Norte.
Existem registos de Sukkwan ter tido uma população indígena de cerca de 200 pessoas, mas no último censo haviam apenas 9 pessoas numa ilha que é do tamanho aproximado do Faial.
A ilha onde se encontravam, a ilha de Sukkwan, estendia-se atrás deles por vários quilómetros, mas eram quilómetros de cerrada floresta virgem, sem estradas nem trilhos, uma densa vegetação de fetos, tsugas, abetos, cedros, fungos e flores silvestres, musgo e lenha apodrecida, abrigo de ursos, alces, veados, ovelhas bravas, cabras montesas e glutões.”
O sítio para onde se estavam a mudar era uma pequena cabana de cedro em forma de “A”, com um telhado extremamente inclinado. Estava aninhada no interior de um fiorde, uma enseada como um pequeno dedo no sudoeste do Alasca ao largo do estreito de Tlevak, a noroeste da Reserva de South Prince of Wales e a cerca de oitenta quilómetros de Ketchikan. O único acesso era por água, de hidroavião ou de barco. Não havia vizinhos. Mesmo por trás deles erguia-se uma montanha de uns seiscentos metros num cabeço imenso, que se unia através de umas colinas baixas a outras na embocadura da enseada e mais longe.”
A Ilha de Sukkwan foi primeiro publicado na coletânea de contos e novelas Legend of a Suicide, que está a ser adaptada ao cinema pelo produtor francês Haut et Court. Vann dedica-a ao Pai, que pôs fim à própria vida.
Cuidado! Esta página pode conter links de afiliados para lhe enganar a cabeça e fazer comprar coisas de que não precisa. Se se deixar perder, faça-o connosco, estará a apoiar este projecto e ficamos muito gratos.
David Vann
David Vann nasceu em 1966, numa ilha do Alasca: a ilha de Adak, no arquipélago das Alaútas, uma cadeia de ilhas que forma um arco e separa o Mar de Bering do Oceano Pacífico.
Viveu a adolescência em Ketchikan, que calha ser a cidade mais próxima de Sukkuan.
Ensina Escrita Criativa na Universidade de Warwick, no Reino Unido, e os seus livros mereceram inúmeros prémios e estão traduzidos em mais de vinte idiomas.
Além de A Ilha de Sukkwan (2008), estão disponíveis em Portugal a Ilha de Caribou (2011), outra novela passada no Alasca, e Aquário (2015), que se passa em Seattle, na costa Oeste dos Estados Unidos. Todos editados pela Relógio d’Água.
Outras obras do autor, de que aguardamos edição portuguesa: A Mile Down: The True Story of a Disastrous Career at Sea (2005), Dirt (2012), Goat Mountain (2013) e Halibut On The Moon (2019).
O Alasca
O Alasca é aquele estado que fica separado dos restantes Estados Unidos, num cantinho do Canadá. Reclamado por espanhóis e ingleses, foi comprado aos russos no século XIX. Hoje em dia, fora das grandes cidades – Anchorage, Juneau, Ketchikan, Fairbanks… – a paisagem humana é rara.
Pelo contrário, a paisagem natural é encantadora. Vale a pena visitar o Alasca, sobretudo, pela natureza. Muito do que irá ver poderá ir parar-lhe ao prato – o Alasca é grande defensor da alimentação local: salmão, halibute, caranguejo gigante, rena ou alce, e bagas e frutos silvestres.
Roy e Jim pescavam trutas Dolly Varden e ensinaram-nos a conservar o peixe: cortam-se filetes que se deixam marinar em salmoura com açúcar mascavado; no dia seguinte fumam-se em lenha de ulmeiro e depois secam-se ao vento. Enterram-se para se manterem gelados e aguentarem o Inverno.
Depois de passear ao frio, aqueça-se com aquela que parece ser a maior cascata de chocolate do mundo, na cidade de Anchorage.
Margarida Branco
© Ler por aí… (2021)
Quando este artigo foi publicado, houve um eclipse do sol visível em Lisboa e no Alasca.
Deixe um comentário