Ler por aí… no Tâmega-Sousa, Norte de Portugal: A Sibila de Agustina Bessa-Luís

Ler por aí… no Tâmega-Sousa, Norte de Portugal: A Sibila de Agustina Bessa-Luís

– Há uma data na varanda nesta sala – disse Germana – que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.”

Não está explícita a localização da Casa da Vessada, mas há indícios na obra que a colocam algures no Tâmega, algures no triângulo formado por Amarante, Penafiel e Marco de Canaveses. No centro deste triângulo encontramos Vila Meã, terra natal de Agustina Bessa-Luís. E é em Vila Meã que se situa a Casa do Paço, casa que inspirou a Casa da Vessada. Esta informação não vem do texto, mas sim do website do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís, que disponibiliza um Roteiro Literário da obra da autora. 

Encontramos no texto várias indicações de carácter gastronómico, que confirmam esta localização: as lérias, que o pai trazia a Quina quando esta estava doente, são tradicionais de Amarante; os rosquilhos, que a mãe levou de Folgozinho, são de Marco de Canaveses; o caldo de castanhas tradicional do dia de finados, que Quina comia na sua casa, é uso na região de entre Douro e Tâmega; e o bucho recheado com farinha de milho, “velho prato do cardápio da casa da Vessada”, que Estina serviu a Abel no seu regresso, é típico de entre Douro e Minho.

A história desta casa confunde-se com a história de Quina, a Sibila, que nasce na Casa da Vessada, herda-a do pai, Francisco Teixeira, em estado de grande penúria:

Começavam a fazer-se visíveis os resultados da fanfarronice estroina de Francisco Teixeira. O desequilíbrio doméstico tomava, com o tempo, uma feição mais grave. Os gastos do amo, o seu profundo desleixo das terras, obrigavam agora a família a uma estrita temperança. Às vezes o dinheiro faltava para pagar as jornas, para comprar o gado necessário à lavoura. Maria [a mãe] não podia impedir-se de considerar com amargura e indignação as saias de suas filhas e cujos fitilhos se despedaçavam, ou os velhos lenços desbotados, o rasto esburacado das chinelas.”

Pouco a pouco, primeiro com a mãe, depois sozinha, Quina assume a Casa da Vessada, torna-a próspera e torna-se ela própria uma mulher rica. Consegue-o graças à sua enorme força interior e sentido prático, e não por quaisquer dons divinatórios, como somos levados a acreditar pelo cognome de A Sibila que lhe era atribuído.

De resto, Quina foi criada numa casa de mulheres fortes:

Elas tinham-se habituado a contar apenas com o seu pulso, a serem mulheres sós, sem a confiança de um ombro másculo a que arrimassem ou uma razão que por elas decidisse o litígio, a soldada, a sementeira, o negócio. Por isso o seu carácter não podia deixar de adquirir acentos viris, assim como as suas mãos tinham calos e nodosidades, como o seu espírito se abstinha de manifestações supérfluas.”

A narrativa atravessa três gerações, desde a juventude e casamento de Maria, mãe de Quinta, até à morte desta, com Germa, a sobrinha, a suceder-lhe. O arco temporal da narrativa tem cerca de oitenta anos, entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. 

Há muito poucas referências históricas que nos permitam ser um pouco mais exactos. A data inscrita na pedra da varanda da Casa da Vessada, 1870, dá indicação da sua reconstrução alguns anos após um incêndio que terá ocorrido nos primeiros anos de casada da mãe de Quina. Há referência a Zé do Telhado, quando Quina era criança, e Zé do Telhado morreu em 1875. Ou seja, Quina poderá ter nascido pela década de 1860 ou 1870. Há ainda uma referência à revolução que deu lugar à república, colocando-nos em 1910 com Quina a chegar ao fim da idade casadoira – teria 40 anos por essa altura? Germa, mulher adulta quando herda a Casa da Vessada, terá nascido já depois destas datas. Esta sucessão, e término da história, poderá situar-se na década de 1940. 

Mas não é a precisão geográfica ou temporal que importa, tampouco o enredo, que não é pródigo em acção. O que importa n’A Sibila, como na generalidade da obra de Agustina, é a linguagem. As palavras de Agustina são pinceladas que nos fazem sentir os ambientes, iluminam os detalhes e transportam-nos para o mundo doméstico e rural do Norte de Portugal, escuro, húmido, rude e austero, e ao mesmo tempo com “uma espécie de aristocracia ab imo (…) da terra”.

Agustina diverte-se a ironizar os tiques desta sociedade, ao mesmo tempo que evidencia subtilmente a condição da mulher da época. Quanto a Quina, foi essa mulher forte, que reergueu a Casa da Vessada, a quem chamavam A Sibila, foi humana como todos nós:

Quina foi apenas mais um punhado obscuro de aspirações que só despontaram ou mal floriram.

É esta a mais grandiosa história dos homens, a de tudo o que estremece, sonha, espera e tenta, sob a carapaça da sua consciência, sob a pele, sob os nervos, sob os dias felizes e monótonos, os desejos concretos, a banalidade que escorre das suas vidas, os seus crimes e as suas redenções, as suas vítimas e os seus algozes, a concordância dos seus sentidos com a sua moral. Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração.”

Agustina Bessa-Luís

Agustina Bessa-Luís
Foto de Agustina retirada do blog Somos Livros, em bertrand.pt

Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã, no concelho de Amarante, em 1922 – assinala-se em 2022 o centenário de Agustina, portanto. Foi em Vila Meã que viveu a infância. Mais tarde, fixa-se na cidade do Porto.

A novela Mundo Fechado, o seu primeiro livro, foi publicado em 1948, mas só em 1954, com A Sibila, é que é reconhecida como um grande nome da literatura portuguesa do século XX. A sua obra é muito extensa, e compreende uma grande diversidade de géneros: romance, novela, conto, ensaio, teatro, biografia, diário, infantil e crónica.

Foi directora do jornal O Primeiro de Janeiro, entre 1986 e 1987, e do Teatro Nacional D. Maria II, entre 1990 e 1993, tendo neste período sido também membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social.

Entre outras distinções, recebeu em 1980 a Ordem de Santiago da Espada, e em 2004 o Prémio Camões. Morreu a 3 de junho de 2019, com 96 anos.

A Casa da Vessada (Casa do Paço) e a sua envolvente

Foto da Casa do Paço (Casa da Vessada) de Paulo Barreira, no Facebook

A Casa da Vessada, na realidade a Casa do Paço, fica situada em Vila Meã, próximo de Amarante. Esta é uma região que não é bem Minho mas também não é bem Douro, nem Trás-os-Montes – é a região do Tâmega – Sousa.

Está inequivocamente integrada na Região dos Vinhos Verdes, abrangendo as sub-regiões de Amarante e Sousa. Os verdes tintos distinguem-se em especial, devido a um clima mais ameno do que nas sub-regiões mais a norte, que favorece a maturação das uvas. Obtém-se aquele Vinhão que fica agarrado ao copo – a provar numa próxima visita. Quando lá estiver, repare nas vinhas de enforcado, em que as vides crescem na vertical, como trepadeiras, buscando os raios de sol.

Visitar esta região é também perder-mo-nos na Rota do Românico, testemunho das primeiras ordens religiosas a instalar-se em Portugal, sobretudo os beneditinos, da ordem de Cluny. Conduz-nos por mosteiros e igrejas, mas também castelos de nobreza, intimamente ligados à fundação da nacionalidade. 

Em 14 de Dezembro de 2022, a emissão do programa Passagens na Rádio Movimento, foi uma conversa com a Isabel Tallysha-Soares, que me acompanhou na leitura deste livro. Pode assistir aqui.

Margarida Branco
© Ler por aí… (2022)

Mais Agustina Bessa-Luís no Ler por aí…

Este foi o primeiro texto publicado no Ler por aí…, em Junho de 2006! Começa assim:

Ema vivia no Romesal, em criança. Com o casamento, mudou-se para Vale Abraão. E frequentemente visitava o Vesúvio. Estes são três lugares fundamentais deste romance de Agustina, todos eles situados na região do Douro, algures entre Lamego e a Régua, na margem Sul do rio. Esta margem é estupendamente retratada logo no início da obra.

Ler por aí... no Douro: Vale Abraão, de Agustina Bessa-Luís


Mais Ler por aí… no Norte de Portugal

Ler por aí... na Serra do Barroso: Terra Fria, de Ferreira de Castro

O casebre de Leonardo e Ermelinda era em Padornelos, junto a Montalegre. Era também nessa aldeia a casa de Santiago, a primeira casa de emigrante a surgir por ali.

Cornos da Fonte Fria é um cume nevado na Serra do Gerês, onde se pretende construir o farol – biblioteca. Só por si, esta ideia é estranha e fascinante ao mesmo tempo. Inserida no ambiente húmido e verde dos bosques de carvalhos, torna-se onírica.

Ler por aí... no Alto Minho: A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro

A Casa, pertencente ao complexo da Quinta do Amparo, localizada em Paredes de Coura, era (e é) uma quinta brasonada, junto das cumeeiras da serra de Agra, do monte Calvário e dos penhascos de Rubiães. Permanece na vizinhança da Galiza, o que representa a continuidade de “gente de velha cepa” e “sangue retinto de suevo”.

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